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Um cometa no circo de horrores


 

  • Kátia Borges

Salvador
Publicado em 10/04/2022 às 05:06:00
Atualizado em 19/05/2023 às 21:57:47
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Nós íamos muito ao circo em um tempo de cruel ingenuidade. Os elefantes, tão bonitos, erguiam-se enormes, disparando jatos de água sobre a plateia, e os leões circulavam, sob o olhar atendo dos domadores, quase rentes às cadeiras de ferro. Eu ficava fascinada com o Globo da Morte, onde as motocicletas giravam ferozes e em looping. Sentávamo-nos nas primeiras fileiras e essa era uma das poucas ocasiões em que eu via um sorriso surgir no rosto da minha mãe. Ela ria dos palhaços que simulavam atrapalhações no picadeiro e dos poodles que dançavam ao som da Macarena, saltando sobre tamboretes de pés curtos, com seus pelos coloridos artificialmente.

Eu ficava bem feliz ao ver minha mãe se divertindo, evento tão raro quanto um eclipse ou a passagem de um cometa no céu da minha infância, e esse era para mim o principal atrativo de uma ida ao circo. Sob a lona colorida, minha mãe ria do mágico de fraque preto surrado que sacava um coelho branco da cartola. Minha mãe ria da mulher cortada ao meio em duas com um serrote que reaparecia “de surpresa” do outro lado do palco. Minha mãe ria do gorila fake que ameaçava arrebentar as grades da jaula e avançar sobre nós, àquela altura já empapuçadas de maçãs do amor.

Covarde por natureza desde sempre, eu fingia coragem para ela, observando com dissimulada alegria os cavalos que trotavam como se estivessem livres, ignorando o arreio apertado e o estímulo dos chicotes. A poeira subia de suas patas seladas, feito fumaça, naqueles curtos galopes em círculos, enchendo as dobras de nossas roupas de passear aos domingos de uma areia escura, cujos vestígios resistentes minha mãe expurgaria nos dias seguintes, com gosto, esfregando e torcendo as peças com seus dedos muito brancos e finos numa bacia com água e sabão.

Após o espetáculo, voltávamos para o longe de nossa casinha simples em ônibus lotados, a minha mão pequena entre as da minha mãe, apertando com força e medo de perder, tagarelando em voz alta sobre os detalhes daquela experiência, como se não estivéssemos todas juntas minutos antes diante das mesmas cenas. Eu não alcançava então a dimensão do sofrimento naquele universo de pobres animais domados em cruel exposição numa espécie de zoológico infernal, falseando truques dóceis para a nossa diversão. Nós, os sonsos algozes de tudo que pulsa em toda parte, contempladores festivos e pagantes de tantos outros circos de horrores.

Para mim, o circo que vinha de cidades distantes trazia consigo humores e luzes de outras civilizações. E eu pensava apenas em ver de perto os animais, que da TV, esse outro tipo de jaula, saltavam para dentro dos meus sonhos como assombrações. Ver o leão, o elefante, olhar os macacos, os cachorros dançantes. Tudo era revestido de um encantamento sem reservas, uma magia inocente que se assemelha ao autoengano que se ergue sobre a racionalidade e sustenta certas paixões inexplicáveis. Aquela sensação angustiante de que estamos presos por vontade aos domadores.