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Mulheres vítimas de violência doméstica são processadas pelos agressores


 

Nos processos, elas enfrentam machismo e agressores pedem até indenização. "É a honra do homem que está em jogo", escreveu advogada de criminoso

  • Fernanda Santana

Publicado em 10/04/2022 às 07:00:00
Atualizado em 19/05/2023 às 21:57:15
. Crédito: Ilustração: Morgana Miranda/Casa Grida

K*. sofreu violência doméstica e mais uma vez seu agressor tenta imputá-la culpa. Ela o denunciou e está resguardada por uma medida protetiva. Impedido de se aproximar, ele respondeu com três processos, um deles criminal. Agora, K. se defende judicialmente de quem a violentou. O delito dela é uma infração compartilhada - ser mulher. 

A perseguição judicial é outro lado da face da violência doméstica. Quando a vítima rompe o ciclo de agressões, há homens que agridem de uma nova forma: transformam violentadas em violadoras. Advogadas especializadas afirmam que processos criminais de ex-companheiros contra mulheres que os denunciaram estão mais recorrentes na Bahia. A lei permite essa jogada judicial.

Só no último mês, uma advogada conta que três mulheres a procuraram depois de processadas pelos homens que as agrediam. A Organização Não Governamental (ONG) Tamo Juntas, que atua na defesa jurídica de mulheres em Salvador, atende 18 delas na mesma situação. Esse número equivale a quase 20% das 100 atendidas.  

O mais comum entre casais com filhos era que o agressor acusasse a ex de alienação parental - quando um genitor põe o filho contra o outro genitor. A criminalização das mulheres, por calúnia ou ameaça, é uma estratégia mais recente. (Se você é vítima de violência doméstica ou conhece alguém nessa situação, veja no fim desta reportagem onde é possível obter ajuda)

O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ) afirma ser incapaz, por falta de detalhamento na catalogação dos processos, de informar quantas baianas estão na situação vivida por K. Por telefone, ela diz passar os dias em sobressalto. Sobretudo aqueles em que há movimentação nos processos que o ex-marido moveu contra ela. 

Para fundamentar as queixas, advogados dos agressores destilam machismo nas páginas dos processos. “Rancorosa” e “movida pelo ódio” são adjetivações atribuídas a K. pela advogada do ex-marido no processo em que ele a acusa de calúnia. Esse crime é previsto no Código Penal Brasileiro e é passível de seis a dois anos de detenção ou multa. 

Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, para “fomentar a imparcialidade no julgamento de casos de violência contra mulheres”. Ainda não há, contudo, avaliação dos impactos do protocolo no cotidiano. O próprio CNJ não sabe informar.  

A reportagem teve acesso a documentos que mostram quando a justiça é cúmplice de táticas que visam agredir a integridade das mulheres. Assim, a roda do assédio gira: com linhas de juridiquês e forjada de legalidade.

De vítimas a agressoras: o processo

R$ 20 mil é a indenização que o ex-companheiro de K. cobra 'pelos crimes falsamente imputados contra ele'. “Usa os processos para me colocar medo. É muito ruim, vivo tensa, ansiosa”, conta K. Nem seria preciso colocar medo: este é um sentimento que a acompanha desde o casamento e fez com que ela pedisse a medida protetiva contra o ex-companheiro. Trecho do processo contra K.: agressor pede indenização (Foto: Reprodução) Neste ano, 3.792 mulheres recorreram a esse mecanismo previsto na Lei Maria da Penha e que obriga o agressor a manter distância da vítima, calcula o TJ-BA. Em cinco anos, o número de mulheres que recorreram à medida subiu 100%. 

Sem poder se aproximar, o assédio processual é uma saída para os criminosos converterem vítimas em algozes. Assédio processual é o nome dessa prática, estudada desde os anos 90, nos Estados Unidos. Na época, eram os jornalistas e ativistas os alvos. Os agressores de mulheres viram nessa possibilidade legal de processar suas vítimas - geralmente por calúnia ou ameaça - uma maneira de perpetuar as agressões. 

Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu como ilícito esse assédio. Mas isso não o caracteriza como crime, apenas pode gerar multa para quem comete. O TJ da Bahia não detalha se houve indenizações geradas. “Ele a coloca no lugar de vingativa, que não aceitou uma traição, que quer afastar os filhos dele”, elenca Taís da Hora, a advogada que recebeu, só em março, três mulheres processadas criminalmente por ex-companheiro agressores.  A advogada vê que “os homens estão inovando com as estratégias a partir dos processos criminais”. O processo criminal pode ter consequências mais graves, como indenização ou detenção, mas, o que os agressores querem é “que a vítima desista das ações”.“Muitas mulheres vão se perguntar se vale a pena denunciar”, completa Da Hora. Essa é uma pergunta que mais da 50% das mulheres que sofrem agressão já se fazem, aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e silencia denúncias. 

'A honra dele está em jogo', escreveu advogada de agressor

É nas páginas dos processos e nos tribunais que mulheres e advogadas se deparam com estratégias que usam argumentos ao assunto tratado. Da Hora já leu uma série de justificativas, assinadas por advogados, que mencionavam, por exemplo, desempenho sexual da mulher, tamanho da vagina e a frequência dela na vida noturna.“São particularidades que atacam as mulheres em vários pontos relativos à sua dignidade.  Direito a legítima defesa da honra é inconstitucional, além de ser ultrapassado, não cabe mais, no entanto, eles ainda se reconhecem nesse lugar de terem sua honra preservada”, afirma ela.A legítima defesa da honra, citada acima, era utilizada quando um réu associava o crime cometido à defesa da sua honra. Essa tese, utilizada ao longo da história penal por feminicidas, foi julgada inconstitucional só no ano passado, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).  Mulheres desconfiam dos órgãos de repressão à violência (Foto: Arquivo CORREIO) Para homens agressores, no entanto, o argumento não é ultrapassado. As vítimas de agressão sabem disso. “É a defesa da honra da pessoa [cliente] que está em jogo”, escreve um advogado em um dos processos acessados. "Ela o ameaçava, fazia chantagem emocional", declara a advogada de um dos agressores, em outro documento.

A acusada de chantagem e ameaça é F*, mulher que teve a vida pessoal e vida íntima expostas pelo ex e a defesa dele num documento judicial. O filho dela precisou tomar remédio para ansiedade desde pequeno, abalado pela rotina de dor da mãe.“É uma coisa tão dolorosa de viver. Ele não só me expôs, ele tenta justificar o injustificável. Só não processo a advogada  porque não quero mais uma dor”, afirma. A Ordem dos Advogados seção Bahia possibilita a pessoas que se sentirem ofendidas abrirem uma representação no órgão contra advogados. “Não se pode defender alguém com argumentos alheios, da vida dela. A solução do caso depende da apuração, mas existe o Tribunal de Ética e possibilidade de representação”, afirma a presidente do órgão, Daniela Borges. Os processos são sigilosos. Por isso, o órgão não informou quantos existem atualmente. 

A recepção do judiciário 

Só depois de décadas de violência doméstica, M*. conseguiu denunciar o agressor, um homem com quem convivia há décadas. Já era uma idosa quando prestou queixa na delegacia. Ele foi preso, mas seu irmão assumiu a função de persegui-la. Certa tarde, M. não aguentou mais: ligou para a Ronda Maria da Penha.

O homem foi preso. Mas, depois de liberado, processou criminalmente a ex-cunhada. A violência processual já era cometida pelo ex-marido. Num dos julgamentos, ficou decidido pela juíza que ela devia ao marido uma partilha de bens. O valor era incompatível à renda dela, que custeava sozinha a casa. 

A juíza afirmou que, se faltava dinheiro a M., que ela remanejasse os custos. O TJ foi questionado sobre a quantidade de juízes denunciados por machismo, via Corregedoria, mas não respondeu. Vítimas de violência enfrentam machismo no Judiciário (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Perfil dos Juízes

Janine Souza, advogada e co-presidenta da ONG Tamo Juntas, traça um perfil comum aos agressores que acionam a justiça para perseguir suas vítimas:“São os mais violentos, geralmente. Eles usam do sistema de justiça para tentar se proteger”.Há situações em que o medo pode ser ainda maior, como para duas clientes processadas pelos ex-agressores policiais “O medo direto é de perder a vida. Elas foram à delegacia. Um dos ex-companheiros a acusou de furto, o outro de ameaça”, conta Janine Souza.  “A verdade é que muitas coisas não são cumpridas. Temos protocolos para atendimentos baseados na questão de gênero, mas quem está verificando o cumprimento?”, questiona Janine, do Tamo Juntas.  Presidente da Coordenadoria da Mulher do TJ, Nágila Brito reconhece que o sistema dos tribunais impossibilita acompanhar os casos de perseguição judicial. “A gente sabe que tem ocorrido, mas esperamos que, com a melhora do sistema, isso melhore”, afirma. 

A coordenadoria trabalha na elaboração de uma ouvidoria para atender mulheres e advogadas que atuam em casos como esses de vítimas que, agora, se veem na posição de se defenderem como criminosas. 

*Os nomes das personagens desta reportagem foram ocultados para não expor as vítimas e por questões de segurança

ONDE BUSCAR AJUDA*Centro de Atendimento à Mulher: 180

*Emergência: 190

*Núcleo Especializado na Defesa das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar da Defensoria Pública do Estado: (71)  3117-6935.

*1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar: (71)  3328-1195/3329-5038

*TamoJuntas (Atendimento advocatício gratuito para mulheres vítimas de violência em Salvador): tamojuntas.org.br/contato/ ou @atamojuntas (Instagram) 

*Deam (lista de contatos de delegacias especializadas no atendimento à mulher): www.policiacivil.ba.gov.br/.