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História de Zumbi foi contada em grupo no primeiro ato do Dia da Consciência Negra


 

História da data completa 50 anos neste sábado (20); tudo começou com insatisfação de jovens negros gaúchos com um 13 de maio que, em vez de abolição, tinha ares de traição

  • Da Redação

Publicado em 20/11/2021 às 05:07:00
Atualizado em 20/05/2023 às 23:40:16
. Crédito: Acervo Oliveira Silveira

Era sábado à noite e, aos poucos, os convidados foram chegando. À medida que adentravam uma sala simples, de paredes e cortinas brancas, na sede do antigo Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre (RS), os jovens, todos negros, se sentavam atrás de mesas escolares. O que se desenrolaria ali no dia 20 de novembro de 1971 era praticamente uma aula, mesmo – mas que ultrapassaria as fronteiras gaúchas e entraria para a história recente do Brasil.“Os participantes do grupo se espalharam no círculo e contaram a história de Palmares e seus quilombos”, escreveu, anos depois, o poeta gaúcho Oliveira Silveira, que não só estava presente, como convocou aquele encontro histórico.Após contarem e ouvirem a história de Palmares, ocorrida a mais de 3,6 mil quilômetros dali, na Serra da Barriga (AL), aqueles jovens gaúchos, inconformados com o racismo sofrido na pele, fizeram uma proposta: que o 20 de novembro, data da morte heroica de Zumbi, fosse o dia comemorado por eles - e não o 13 de maio, quando foi assinada a Lei Áurea, em 1888. Ali, na sala de um clube fundado porque outros espaços em Porto Alegre não aceitavam negros, nascia o primeiro ato em referência do Dia da Consciência Negra da história do país, há exatos 50 anos.

A nacionalização da data é posterior e muda de endereço até chegar a Salvador, em 1978, mas falaremos disso mais adiante. Ali, em Porto Alegre, berço da ideia que correu o país ao longo da década de 1970, o desejo de fazer um contraponto ao 13 de maio já vinha sendo gestado há algum tempo. No centro histórico da capital gaúcha, jovens negros se encontravam para discutir política, história, cultura, negritude: faziam isso nas ruas.

Pontos negros A esquina da Rua dos Andradas com a Marechal Floriano, um dos pontos negros bem em frente à centenária relojoaria Casa Masson, testemunhou alguns desses encontros, onde costumava haver um consenso: não existiam razões para se comemorar o 13 de maio. A data era “traição, liberdade sem asas e fome sem pão”, como escreveu Oliveira Silveira em um poema de 1969.

E não era só lá que se sentia isso: “Tomando o Movimento Negro contemporâneo e suas discursividades como marco, as ações em torno do 13 de maio sempre foram de denúncia da ‘falsa abolição’”, recorda a historiadora Martha Rosa Queiroz, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e integrante de Rede de HistoriadorXs NegrXs (HN).

Em Porto Alegre, então, foram em busca de uma alternativa:“O 13 de maio não tinha relevância para a comunidade negra. Eles foram buscar uma data que tivesse significado. E acharam a data de morte de Zumbi, grande líder daquele país que foi Palmares”, conta a professora Naiara Oliveira Silveira, filha do poeta que seguiu na empreitada junto com Antonio Carlos Côrtes, Ilmo da Silva e Vilmar Nunes, primeiros fundadores do Grupo Palmares de Porto Alegre. Além de Zumbi, o grupo se preocupou em ter outras opções. A programação de eventos para o ano de 1971 previa homenagens também aos abolicionistas Luiz Gama e José do Patrocínio. Zumbi prevaleceu nas discussões em casas de professores negros da cidade, em plena ditadura militar. O primeiro ato pelo 20 de novembro da história aconteceu no Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre, fundado porque outros espaços não recebiam negros; hoje, onde ficava o clube, há um hospital (Foto: Acervo Oliveira Silveira) Grupo armado? Por falar em ditadura, o ato marcado para 20 de novembro de 1971 em Porto Alegre não passou incólume aos olhos da repressão. O evento foi noticiado na imprensa e, às vésperas do ato, em 18 de novembro, integrantes do Grupo Palmares foram convocados a comparecer à sede da Polícia Federal.

“O grupo foi chamado à sede da Polícia Federal para, através de um de seus integrantes, apresentar a programação do ato e obter liberação da Censura”, lembra Oliveira Silveira num artigo sobre a história da data, publicado numa coletânea de 2003.

A historiadora Maria Cláudia Cardoso, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e integrante da HN, lembra que o grupo de universitários foi confundido com um grupo armado. “Eles foram chamados na Polícia Política porque achavam que eles eram um grupo armado, a VAR-Palmares”, afirma, se referindo à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares.

O jornalista e professor Edson Cardoso, que ainda morava em Salvador, lembra que a temática racial constava no “decálogo da ditadura” - não se podia falar. “Você vivia uma conjuntura de repressão, de proibição, mas o mundo estava discutindo a temática. Os anos 1960 são de descolonização, de luta pelos direitos civis dos negros americanos. Imagina como isso bate na juventude brasileira? Bateu forte”, afirma.

Para a atriz Vera Lopes, que passou a integrar a militância em 1978, lá em Porto Alegre, os negros souberam como driblar a ditadura.“A gente sempre fez coisas, podendo ou não. Eu acredito que o racismo institucional acaba colocando pessoas negras em um determinado lugar. As pessoas, de uma forma geral, não dão nada por nós, não nos consideram capazes intelectualmente e, de certa forma, esse não nos considerar capazes nos dá uma ‘certa’ liberdade, entre muitas aspas”, aponta.Talvez, isso ajude a explicar como, numa época em que a ditadura militar valorizava as questões oficiais, aquele pequeno grupo de jovens gaúchos tenha conseguido fazer um contraponto ao oficial 13 de maio. “Eu acho que quando aqueles jovens se reuniram e começaram uma data alternativa ao 13 de maio, eles não tiveram todos os olhos voltados para si. Fizeram o que eles acreditaram”, completa.

De certa forma, influenciaram outros grupos pelo Brasil. Sete anos depois, em 1978 o Movimento Negro Unificado (MNU), numa assembleia nacional em Salvador no dia 4 de novembro de 1978, decretou o caráter nacional da ideia dos gaúchos: o 20 de novembro era o Dia Nacional da Consciência Negra. Mais adiante, se tornou feriado em várias cidades.

Maria Cláudia Cardoso destaca a relevância do feito:“É importante você tirar uma data da sociedade civil e levar para o campo oficial. É um movimento contrário na história brasileira, que é construída para valorizar heróis do próprio Estado”, aponta.Em 1988, no centenário da assinatura da Lei Áurea, pessoas no Brasil inteiro tomaram as ruas para protestar. No Rio, a Marcha Negra Contra a Farsa da Abolição foi reprimida por 600 soldados do Exército. No dia 13 de maio de 1988, no centenário da assinatura da Lei Áurea, cidades de todo o Brasil, incluindo Salvador, tiveram protestos contra a farsa da abolição (Foto: Luiz Hermano/Arquivo CORREIO) Do Sul para a Bahia Depois daquele primeiro ato em 1971, outros eventos alusivos ao 20 de novembro foram acontecendo. “Todos os anos tinha alguma atividade. Primeiro era no dia, depois na semana, depois no mês – [a professora] Maria Lopes Fontoura costuma dizer que o 20 criou o milagre de ser 30”, pontua Vera Lopes.

Àquela altura, muitos dos membros do Grupo Palmares já estavam na Revista Tição, inclusive ela e Oliveira Silveira. “Ele era o militante com mais longa trajetória e era professor. E nós, que estávamos chegando, que éramos jovens, que não detínhamos esse conhecimento, Oliveira tinha uma paciência incrível de nos apresentar novas possibilidades, de viver com o enfrentamento ao racismo e de também conhecer as lutas negras”, completa Vera, que veio a Salvador em 1980.

Salvador, assim como outras cidades pelo Brasil, não era alheia ao que acontecia ao redor do país.“A Bahia teve papel relevante no fortalecimento do 20 de novembro na medida em que, desde o início da década de 1970, já se organizava em torno de expressões negras de combate ao racismo e, de pronto, aderiu ao Movimento Negro Unificado”, pontua Martha Rosa Queiroz.O professor Edson Cardoso, que quase sempre militou fora da capital baiana, não deixa de destacar o papel da cidade. “Aqui, o movimento negro sempre deu à data visibilidade de multidão, de rua, de força. A contribuição da Bahia é enorme, sempre. Isso é inquestionável, com certeza a Bahia é fundamental para que essa vitória do 20 tenha acontecido”, diz.

Pisar em solo palmarino Líder do Olodum, João Jorge lembra que foi a partir de 1980 que a Bahia entrou de vez na Consciência Negra. “Os movimentos negros da Bahia fizeram do dia 20 uma grande data para refletir, pensar nas bases, indicar qual o papel da população negra no Brasil, discutir o racismo”, lembra.

Aqui se organizavam eventos para levar a comunidade negra até a Serra da Barriga, território do Quilombo dos Palmares.“Entre 1981 e 1984 saíram, várias vezes, 12 ônibus da Bahia, com vários blocos para a Serra da Barriga, como se fosse uma peregrinação para um lugar histórico”, completa João Jorge.E era, de fato. Em 1985, a Serra da Barriga foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em 2017, recebeu o título de Patrimônio Cultural do Mercosul.

Para a historiadora Martha Rosa Queiroz, Bahia e Pernambuco sempre participaram em peso dessas expedições. “Era lindo nosso encontro nas terras palmarinas. Fazíamos essa peregrinação todos os anos e saímos revigoradas para mais um ano de combate às atrocidades que atacaram Palmares e nos atacam até hoje”, recorda.