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Da Redação
Publicado em 15 de agosto de 2022 às 17:00
- Atualizado há 2 anos
Foto: Divulgação A morte de Jô Soares, que nos entristeceu tanto, foi mais do que a perda de um grande e querido artista. Foi também um inevitável marco da passagem do tempo, da lembrança de tantas e tantas eras que definitivamente já se foram e das quais ele foi parte integrante no cenário do dia a dia da vida de milhões de brasileiros.>
Jô Soares fez parte de uma geração de grandes artistas, surgidos a partir da segunda metade do século 20, que desbravaram, deram cara, forma e conteúdo à cultura brasileira que, pela primeira vez, era exibida para todo o Brasil.>
Do filme “O Homem do Sputnik”, chanchada da Atlântida de 1959, até a sua morte, no início desse mês, embora estivesse pouco à vista do público nos últimos seis anos, foram mais de seis décadas em que Jô esteve presente na vida de várias gerações de brasileiros.>
O “Jô Soares Onze e Meia”, no SBT, e o “Programa do Jô”, na Globo, foram os maiores programas de talk show da história da televisão brasileira. Quem não era nascido para ter visto seus tempos pregressos de humorista teve a chance no quadro “Do Fundo da Caneca”, no Programa do Jô, quando assistíamos algumas das esquetes de humor do antigo programa “Viva o Gordo”.>
Nessa época, Jô se multiplicava em inúmeros personagens. No pastiche que foi o fim da ditadura, ironizava os generais. Na tragicomédia dos planos econômicos do governo Sarney, fazia o Palhaço Goiabada, que reclamava da concorrência da realidade.>
O Capitão Gay tinha a companhia do fiel escudeiro Carlos Suely (interpretado por Eliezer Motta, que ficou famoso também com o personagem Batista). Motta era policial civil na vida real, mas teve que largar a corporação porque ouvia gritinhos dos bandidos que prendia.>
Ao lado de Paulo Silvino, Jô satirizava os telejornais com a Rádio Cruzeiro e o Jornal do Gordo, esse “para pessoas mais ou menos surdas”, com Jô se esgoelando e fazendo mímicas no canto da tela depois que Silvino lia as notícias.>
Jô se ironizava e fazia chacota com o próprio peso. “Mas o meu pé é magrinho, magrinho”, dizia o bordão do personagem que era um médico gordo que receitava aos pacientes que ganhassem peso. Jô ainda usava uma roupa com enchimento para exagerar no absurdo.>
Podia ser outro personagem, mas era verdade: Jô Soares foi motoqueiro por 40 anos, só desistindo de andar sobre duas rodas depois de sofrer dois sérios acidentes num curto espaço de tempo.>
Mesmo muito culto, não deixava a erudição lhe empolar. Ao contrário, preferia misturá-la à galhofa, numa grandeza que é para poucos. Nos seus programas de entrevistas, as brincadeiras com o seu quinteto, que depois virou sexteto (e terminou quarteto), vestidos e travestidos, tinham o espírito dos tempos dos programas de humor. Havia a risada tonitruante do baiano Bira e os gracejos com o garçom chileno Alex. Com seu bongô, Jô às vezes se tornava mais um integrante do conjunto musical.>
Ficaram célebres as entrevistas com malucos beleza como os cantores Serguei e Rogério Skylab. Jô recebia autoridades, mas seu tapete vermelho estava estendido para figuras como o irrecuperável Mário Mukeka, o pirata dos mares baianos. E quando algum convidado estrangeiro falava espanhol, ele pedia para que repetissem a frase “cair no poço, não posso”, que marcava a diferença de entonação entre o português e o espanhol.>
Em 1973, 15 anos antes de estrear como entrevistador, Jô Soares teve uma breve primeira experiência no ramo com o “Globo Gente”. Ele gostava de repetir um trecho de uma entrevista com Gal Costa, que fez nessa época, em que se confundia ao citar o violonista e compositor Jards Macalé, chamando-o de Tião Macalé (humorista famoso pelo bordão “Nojento, tchan!”).>
Quando Caetano, Gil ou Gal iam ao programa, Jô mostrava de surpresa um vídeo dos anos 70 com os Doces Bárbaros rolando na relva, para a gargalhada da plateia. Quando recebia o Rei Pelé, exibia um trecho hilário do filme “Os Trombadinhas”, em que Pelé diz que é Jô Soares.>
Em 1967, no mais marcante episódio do seriado “Família Trapo”, na Record, Pelé bateu bola em cena com Jô Soares e Ronald Golias. O personagem de Jô era o mordomo Gordon, trocadilho com seu peso. Eram Jô e Carlos Alberto da Nóbrega que escreviam os roteiros dos capítulos.>
Aos 12 anos, Jô foi testemunha ocular da final da Copa de 50, no Maracanã, assistindo o choro da torcida com a derrota inesperada. Quatro anos depois, na Suíça, onde estudava, foi ele que avisou aos jogadores, que choravam desolados achando que estavam eliminados, que a Seleção estava classificada para a próxima fase da Copa do Mundo.>
Jô tinha uma eterna cara de criança, e sua interpretação um proposital jeito infantil. “Só porque eu sou pequenininho”, era o bordão de um dos seus personagens.>
Apesar do título, seu programa Jô Soares Onze e Meia quase nunca começava na hora. “Não vá pra cama sem ele”, dizia a chamada, e esperávamos até bem tarde. Nessa época, no nascedouro dos e-mails, ele lia charadas mandadas pelo público para serem decifradas por Derico, seu indefectível Assessor para Assuntos Aleatórios.>
Jô estimulava que começassem o e-mail chamando-o de algum curioso sinônimo de gordo. E quando Derico acertava a charada, Jô tentava fazer pouco caso e dizia que quem mandou a pergunta tinha só dois anos de idade.>
Uma vez, quando eu era pequeno, mandei um email que Jô leu no ar, chamando-o de “Rotondo Jô” e com uma charada para Derico, que tirei de um livro de charadas que eu tinha. Adoraria encontrar esse trecho do programa por aí, perdido em alguma fita VHS que por acaso ganhe vida novamente no Youtube.>
Figuras como Jô Soares nunca deveriam partir. Se todas essas histórias tivessem novos capítulos, nos dariam o conforto já conhecido daquelas entrevistas, daquela trilha sonora, daquele tempo.>
Quando terminava uma entrevista que todos estavam gostando muito, a plateia de Jô lamentava com um “ahhhhhhh”. As entrevistas acabaram, mas, com esse alegre lamento, podem ser revividas nas memórias e nas reprises que não nos deixarão mentir.>
Adeus, Jô… Viva o Gordo!>
*Lucas Fróes é jornalista.>