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'Adaptei meu sonho de maternidade à realidade', diz mãe de criança com microcefalia causada por zika

Há 10 anos, primeiros casos do vírus no país eram identificados em Camaçari

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 10 de maio de 2025 às 05:00

Jéssica, Joana e Eulina compartilham desafios e presentes da maternidade
Jéssica, Joana e Eulina compartilham desafios e presentes da maternidade Crédito: Arte/CORREIO

Em outubro de 2015, grávida de seis meses e em meio a um misto de incredulidade e pavor, Joana Passos se perguntava por que aquilo estava acontecendo na sua vida. Quase 10 anos depois, cursa psicologia com o sonho de atender mães como ela e fala com amor e orgulho da filha mais velha, Alice, de 13 anos, e da mais nova, Gabriela, de 9, que tem microcefalia causada pelo vírus da zika.

Joana tinha 34 anos quando engravidou de Gabriela, em abril de 2015, e pegou a doença. Foi o mesmo mês em que surgiram os primeiros casos de zika no país. O município pioneiro foi Camaçari e logo as primeiras amostras suspeitas foram levadas às mãos dos virologistas Gubio Soares e Silva Sardi, do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia.

Depois de primeiros anos de incertezas, aprendizados e idas e vindas pelas mais diversas especialidades médicas com Gabriela, Joana pode respirar mais fundo. “Hoje me sinto bem mais fortalecida. E para cuidar do outro a gente precisa se cuidar primeiro. Fiz bastante terapia, contei com ajuda de uma rede de apoio e me uni a outras mães como eu. Mas essa aceitação é um processo contínuo”, diz ela.

A relação entre as duas filhas também passou por um processo de transformação. Vendo a vida da família mudar por causa da irmã e quase todo o cuidado sendo direcionado a Gabriela, Alice se sentia deixada de lado. “Vivia entre a raiva por ter uma irmã com microcefalia e a culpa por sentir essa raiva. Hoje, as duas têm uma relação de amor e cumplicidade e se comunicam da maneira delas”, conta a mãe.

Joana (ao centro), com as filhas Alice (à esquerda) e Gabriela (à direita)
Joana (ao centro), com as filhas Alice (à esquerda) e Gabriela (à direita) Crédito: Marina Silva/CORREIO

Eulina Farias, de 44 anos, também só conseguiu bem depois a resposta para a pergunta que a perturbou durante a gravidez. Emocionada, diz que acredita que o filho Deividy, de 9 anos, veio para transformar a sua vida e ajudá-la a amadurecer. Foi um longo processo até chegar a essa resposta.

“Hoje eu sei lidar melhor com tudo isso, mas por muito tempo foi perturbador sair na rua com ele e ver os olhares, receber perguntas como até que idade ele vai viver. Eu não sabia o que era crise de ansiedade e de pânico antes de ser mãe. Relutei, mas, com a pandemia, precisei buscar ajuda de um psicólogo”, lembra Eulina.

Abrindo o coração, confessa que, quando descobriu que o filho teria microcefalia, por volta do sexto mês de gestação, sentiu o chão se abrir sob os pés. Pensou em abortá-lo ou levá-lo, depois de nascido, a um orfanato. “Eu não queria esse universo para mim. O médico dizia que podia me colocar em contato com outras mães na mesma situação, mas eu não queria saber”, confessa.

Foi somente quando Deividy nasceu e Eulina o viu chorando que se deu conta de que finalmente sentia amor pelo filho e uma enorme vontade de protegê-lo do mundo. “É muito cheirinho e muito beijinho que eu dou nele. Ele me olha, ri. Eu converso muito com ele do nosso jeitinho”, se derrete Eulina, que não tem outros filhos e fez laqueadura para não ter mais.

Eulina e Deividy
Eulina e Deividy Crédito: Arquivo Pessoal

Assim como Eulina transformou a dor em ativismo e é presidente da Amae, Associação de Microcefalia Acolhimento e Empatia, Joana fundou a Abraço Microcefalia e foi presidente da ONG até o ano passado.

Foi na Abraço que Jéssica Valdinucci, de 29 anos, encontrou acolhimento e forças para criar Aila, de 9 anos. Das três mães, ela foi a última a parir, mas as informações ainda eram escassas na época. Jéssica lembra que os médicos diziam não saber qual grau de comprometimento a filha teria e como seria a vida dela.

Sentindo muito medo, ela viveu um luto pela filha que idealizou nos primeiros meses de gravidez, antes de saber do diagnóstico de microcefalia. “Eu tinha a idealização de um filho, sempre foi um sonho. A gente imagina como vai ser o rostinho, como vai ser a relação, como vão ser os passeios. Eu tive que adaptar esses planos para a realidade que eu ia viver”, diz Jéssica.

Ao contrário de Eulina, ela logo mergulhou em pesquisas sobre o tema e se dedicou à preparação para ser a mãe que Aila precisaria ter. Depois do nascimento, a correria continuou. Nem pode viver o puerpério como deveria. Desde os primeiros dias de vida, Aila ia para cima e para baixo a neurologistas, pediatras, oftalmologistas, fisioterapeutas e por aí vai.

Agora, consegue desfrutar a tão sonhada maternidade. “Ela é o meu amorzinho, meu xodó. Me sinto completa e realizada como mãe de Aila. Eu sempre tive esse sonho e, graças a Deus, ela me proporciona muitos momentos de sentir a maternidade, de precisar de cuidado. E isso vai ser para sempre”, se emociona Jéssica, que não pensa em ter outros filhos e é mãe solo.

Jéssica (à direita) e Aila (à esquerda)
Jéssica (à direita) e Aila (à esquerda) Crédito: Arquivo Pessoal

Rotina

Gabriela, Deividy e Aila agora têm rotinas de cuidado organizadas e bem menos corridas, embora continuem fazendo reabilitação algumas vezes por semana. Permanecem com uma série de limitações como não andar, não falar e não se alimentar sem ajuda. Mas são capazes de sentir, olhar e sorrir e ter momentos de lazer e diversão.

Graças às mães, que se dedicam 24 horas por dia aos filhos. Antes de engravidar, Joana tinha uma empresa de comunicação. Eulina era dona de um mercadinho. Jéssica era gerente de uma loja e fazia faculdade de administração. As três não tiveram mais tempo ou condições emocionais de darem continuidade a esses projetos. Todas pararam de trabalhar para cuidar dos filhos.

Até os hobbies foram deixados de lado. É que nem mesmo para a escola Gabriela, Deividy e Aila vão todos os dias. Gabriela é a única das três crianças que segue com a rotina escolar. Ela vai às aulas três vezes por semana, para que possa descansar, e participa das atividades dentro das suas limitações.

Deividy frequentou a escola até o ano passado e Eulina deixou de levá-lo por medo de que ele não fosse bem cuidado e que os profissionais são soubessem lidar com ele da maneira correta. Aila também não está mais indo à escola este ano. Jéssica diz que ela está com cirurgias marcadas e um processo de crises convulsivas acentuado.

Desenvolvimento

A escola foi o primeiro ambiente que a doutoranda em neuropsicologia Mirella Allende procurou para pesquisar o desenvolvimento cognitivo, motor e social de crianças de Recife afetadas pela Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus da zika (SCZ). Foi em Pernambuco que o aumento de casos de microcefalia chamou atenção primeiro e permitiu a conexão com o aumento de casos de zika.

Mas Mirella se deparou com situações parecidas como as das três crianças citadas na reportagem. A ausência delas nas escolas é muito forte, principalmente pela vulnerabilidade socioeconômica e por questões de saúde.

Um estudo conduzido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde da Fiocruz Bahia, publicado este ano na revista JAMA Network Open, mostra que crianças afetadas pela síndrome possuem maior risco de morte por doenças infecciosas e por doenças dos sistemas respiratório e nervoso.

Uma das mães entrevistadas por Mirella disse ter medo de que o filho seja contaminado na escola e, por isso, ele não frequenta as aulas. Outra mãe gostaria de levar a criança, mas encontra barreiras físicas. É que, apesar de a prefeitura local disponibilizar transporte escolar, a mãe precisaria subir uma escadaria com o filho, que depende de uma cadeira de rodas, para acessar o local onde o transporte passa.

Essa mesma mãe foi abandonada pelo companheiro e estava com um bebê de colo quando Mirella foi visitá-la para a pesquisa. “Primeiro, foram cerca de três horas de acolhimento dessa mãe que chorava e desabafava para que, depois, eu pudesse conduzir a pesquisa”, lembra a pesquisadora. Dos 25 entrevistados, 24 eram mães. Apenas um pai participou da pesquisa.

Por mais que haja a dedicação dessas mães, Mirella defende que as crianças sejam atendidas adequadamente para que possam frequentar a escola e receber acompanhamento médico adequado. “No início da epidemia de zika, as crianças e mães foram muito visibilizadas. Ao longo desses 10 anos, elas foram sendo esquecidas”, coloca a pesquisadora.

“Antes dela ter uma deficiência, ela é uma criança. Tem família, tem história, tem sentimentos e tem direitos. Não é a criança do zika, como muita gente fala. É uma criança”, acrescenta Mirella.