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Moyses Suzart
Publicado em 26 de abril de 2025 às 05:00
Não há dúvida que o papa Francisco remodelou a Igreja Católica, deixando um legado de abertura para assuntos antes intocáveis na liturgia, acolhimento aos menos favorecidos e sensibilidade social. Estes serão seus principais legados, além de um senso de humor primoroso, a paixão por futebol e, não menos importante, preferir Pelé a Maradona. Contudo, até que ponto este legado mudou a cara da maior religião cristã no mundo? E até que ponto o seu substituto vai manter e ampliar este legado ou vai frear seus pensamentos? >
O novo papa, caso tenha uma filosofia diferente do seu antecessor, terá como principal dificuldade frear o que o argentino deixou como herança: a abertura da igreja para o novo mundo. >
Logo que assumiu seu posto maior na Igreja em 2013, Francisco, na sua primeira publicação, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, mostrou como seria sua postura em relação à renovação eclesial: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação”. >
O agora saudoso papa pregou uma renovação do papel da Igreja, buscando transformar a maneira como os católicos vivenciam sua fé no mundo moderno. Imagine fazer isto de forma tão intensa em uma religião com mais de 2 mil anos de existência. >
Francisco abandonou a postura tradicionalista romana e focou em uma Igreja mais missionária, inclusiva e menos centrada nas estruturas do Vaticano. Adotou, inclusive, o termo ‘saída’, que é justamente a retirada interna da igreja para pastorear pelo mundo, como os pastores fizeram após a partida de Jesus. E mostrou na prática: entre 2023 e 2024, viajou 47 vezes, visitando mais de 60 países com momentos históricos, como no encontro com o Aiatolá Ali Al-Sistani, no Iraque, em solo muçulmano xiita. >
A postura de abertura de Francisco, principalmente no aspecto ecumênico e no diálogo inter-religioso, também trouxe várias críticas durante seu pontificado. Ele foi acusado por alguns como “excessivamente progressista” ou de se afastar das tradições da Igreja mais tradicional.>
O papa, contudo, nunca abandonou seu perfil missionário, o que provocou, muitas vezes, confusão entre sua filosofia com ideologia política. Ele chegou a ser acusado de ‘politizar’ o evangelho. Este, inclusive, será outro desafio para o novo líder católico num mundo extremo. >
“Ele transformou a teologia da libertação, que era uma voz dissidente, num patrimônio comum de toda a igreja. Então, quando Francisco falava ‘nenhuma família sem terra, nenhum trabalhador sem trabalho’, isso tem muito a ver com princípios da tradição cristã da caridade. Porém, em função das políticas recentes, inclusive do crescimento da extrema direita, sua ação pastoral foi confundida com ideologia partidária”, explica o historiador doutor Zózimo Trabuco, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob).>
Católica praticante, a aposentada Rita de Cássia afirma que o papa trouxe avanços significativos, mas admite que o lado conservador também é importante e foi deixado de lado por Francisco. “Eu sou meio tradicionalista. Tem coisas que o papa fez que não concordo, mas me mantive calada e rezava para que ele obedecesse mais aos ensinamentos deixados na palavra de Deus”, disse Rita, que espera um novo líder mais voltado para a tradição romana.>
“O próximo papa, pra mim, tem que ter o coração misericordioso de Francisco, porém mais obediente à palavra de Deus. Que realmente os cardeais ouçam a voz de Deus nesse conclave, que não queiram eleger só o lado humano”, completa.>
Outra fiel, Maria Nêres, pensa diferente. Para ela, Francisco fez tudo que um papa deveria fazer. “O papa Francisco representou o verdadeiro exemplo de Cristo, buscando sempre acolher o mais pobre, o necessitado de amor, aqueles que são excluídos da nossa sociedade. O nome escolhido por ele já representa toda a simplicidade, amor ao próximo, como São Francisco nos ensina”, diz. Sobre o novo papa, Maria resumiu: “Espero que o novo papa, inspirado pelo Espírito Santo, dê continuidade ao legado do papa Francisco e siga o exemplo do amor, que é Jesus Cristo”, conclui. >
Francisco assumiu um papel que, assim como Jesus Cristo, não agradou a todos. Neste conclave, muito mais pela escolha do nome, estão em jogo também as características do próximo Santo Padre. Será conservador, moderado ou liberal? É uma batalha silenciosa na igreja que também pode ser colocada na herança do argentino.>
Considerado o mais liberal dos papas, Francisco também fez crescer o rebanho, principalmente entre os não religiosos e católicos não praticantes, que foram fisgados pela renovação carismática que vem sendo construída aos pouquinhos a partir da figura de João Paulo II, hoje santo. Apesar de estar em andamento, essa revolução só encontrou um terreno mais sólido com Francisco. >
“Não sabemos para que lado vai os ventos da institucionalidade católica agora. Mas o papa Francisco foi muito importante para o crescimento de iniciativas ecumênicas. Isso foi muito celebrado, pois também tem relação com o movimento econômico. Isso impacta em outras religiões, sem dúvida. Temos que lembrar que a Igreja Católica é uma entidade multinacional, uma instituição com capitalidade e relações em todo o mundo. O papa também tem esse papel diplomático e institucional.”, explica Zózimo Trabuco. >
Para ele, o novo pontífice terá dificuldade para manter esta imagem aberta da igreja em pleno século 21. “Eu acho que a tendência é o papa ser mais moderado e não aprofundar mudanças apontadas ou já feitas pelo papa Francisco. Mas acredito que, do ponto de vista pastoral, da imagem pública que a Igreja Católica quer passar, acho um pouco difícil retroceder desta face franciscana da Igreja, mais preocupada com o problema ecológico e com a instituição social”, completa. >
Maior país católico>
O Brasil continua com o maior número de católicos do mundo. Contudo, questões como o avanço das religiões evangélicas deixam a Igreja sem saber como será seu futuro no país. Por isso, o novo papa deve ter uma visão especial do solo brasileiro. Facilitaria muito se o próprio líder fosse o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, cardeal Dom Sérgio da Rocha, que é um dos cotados. Caso seja eleito, deve manter o legado deixado por Francisco, principalmente no aspecto carismático entre os jovens. >
“Os ensinamentos, os gestos do papa Francisco repercutiram muito na Igreja e no mundo, não só pelas suas implicações internas na vida da Igreja, mas pelo significado ético, religioso, político dos seus ensinamentos, daquilo que fez, daquilo que realizou e nos ensinou”, disse Dom Sérgio, antes de embarcar para o Vaticano, mas sem entrar no mérito de suas chances reais no papado. >
“Em relação às especulações sobre o novo papa, é preciso primeiro respeitar esse momento. As especulações existem, mas sabemos que o Espírito Santo sempre surpreende a Igreja”, completou, um pouco antes de sua viagem para Roma, onde fará parte do conclave. >
Francisco marcou seu pontificado com avanços importantes. Deu mais espaço às mulheres dentro da estrutura da Igreja, acolheu com mais empatia os fiéis LGBTQIA+ e trouxe o cuidado com o meio ambiente para o centro do debate religioso, algo inédito. Mostrou que a Igreja pode ser mais próxima, simples, moderna e sensível aos desafios do nosso tempo. Ao novo papa, resta a missão de escolher entre dar continuidade a esse legado transformador ou atender aos setores que pedem um retorno à tradição. O mundo todo, católico ou não, observa.>