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Thais Borges
Publicado em 1 de março de 2025 às 05:00
A primeira reunião do designer Pedrinho da Rocha com o sócio-fundador do bloco Eva, Hunfrey Atayde, foi marcada por um ponto em comum: a percepção de que a mortalha - até então, a vestimenta obrigatória da maioria dos blocos de Salvador - precisava de renovação. O encontro foi alguns meses antes do Carnaval de 1993, que seria um ano simbólico para a agremiação: seria a estreia da banda Asa de Águia puxando o Eva. >
O Asa pediu que o bloco contratasse Pedrinho, que era o artista com quem a banda mais gostava de trabalhar. "Eu relatei para ele uma coisa que a gente tinha percebido numa quantidade maior do que nos outros anos: muita gente cortava as mortalhas. Para alguns, era um incômodo, porque era um tecido longo, mais encorpado, que tinha uma dificuldade de lavar para o dia seguinte", lembra Hunfrey Atayde. Ele perguntou se o designer tinha alguma ideia. A resposta de Pedrinho foi imediata. >
"Eu disse que queria encurtar a mortalha", conta Pedrinho. Havia um medo de que a recepção fosse ruim, mas o artista defendeu que um bloco como o Eva e uma banda como o Asa de Águia poderiam ter essa ousadia. "Ele (Hunfrey) topou e só pediu segredo. Curiosamente, eu trabalhava já para outros blocos havia 10 anos, mas ninguém nunca tinha topado isso", lembra o designer. >
Daquele encontro, nasceria a peça que não apenas se tornaria um dos símbolos do Carnaval com a axé music como seria exportada para outras festas pelo Brasil. No início dos anos 1990, a potência do gênero musical tinha levado ao surgimento de micaretas em grandes cidades, como Brasília e Fortaleza. Tal como aconteceu com os trios, blocos e as bandas que surgiam aqui, o abadá se tornou um dos ativos daquele novo momento. >
O nome ainda não existia, mas dali em diante, o abadá passaria a representar mais do que um simples ingresso ou forma de identificação de foliões, como explica a analista da indústria criativa do Senai Cimatec, Phaedra Brasil. De acordo com ela, o item se transformou em um ícone da cultura festiva nacional. "O que começou como uma peça funcional evoluiu para um item de moda sazonal, influenciando tendências e gerando um mercado próprio de customização que movimenta milhões durante a temporada festiva", diz Phaedra, lembrando que estilistas e marcas renomadas passaram a assinar coleções especiais de abadás. >
"E como tudo na moda tem seu ônus e seu bônus, a mesma peça que inclui também exclui, tirando um pouco a essência do carnaval, que é uma festa do povo. Para a axé music, o abadá representou uma revolução na forma de comercializar e profissionalizar o gênero musical", acrescenta. O modelo de negócio baseado na venda das vestimentas conseguiu financiar estruturas elaboradas, atrair patrocinadores e transformar o axé numa manifestação cultural de alcance nacional e até internacional. "A estética dos abadás também influenciou o próprio visual dos artistas e a identidade visual do axé, com cores vibrantes, estampas tropicais e referências à cultura baiana sendo incorporadas tanto nas roupas quanto nos cenários dos shows". >
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A primeira ideia de Pedrinho da Rocha era de fazer algo inspirado na capoeira - cujo nome da roupa usada é justamente abadá. O termo, na verdade, vem do iorubá ‘agbadá’ e foi trazido pelos malês para a Bahia. A palavra ainda hoje é amplamente utilizada em países como a Nigéria e representa uma indumentária tradicional. No Brasil, as roupas com estilo africano são frequentemente chamadas de abadás. >
Mas por um conhecimento pessoal da capoeira, Pedrinho da Rocha pensou em fazer uma camisa e uma calça capri com tecido cru. Aos poucos, foi virando uma bata, a calça se tornando bermuda. "Tudo isso acabou indo por água abaixo e ficou a ideia de encurtar a mortalha. Eu estava começando a trabalhar com computador na época e a fantasia era um segredo. Lá, eu tinha um arquivo ‘projeto abadá’, mas não era o nome", conta o designer. >
Era tão secreto que nem Durval Lélys, vocalista do Asa de Águia, sabia os detalhes. Algumas semanas antes do Carnaval, o cantor foi ao escritório de Pedrinho e perguntou se a nova roupa já tinha nome. "Eu disse que não, mas que tinha chamado de projeto abadá. Falei de mais dois nomes: ‘pra pular’ e ‘parangolé", conta o designer. O segundo nome seria uma homenagem às obras homônimas do artista brasileiro Hélio Oiticica, morto em 1980. "Durval perguntou: posso usar o nome abadá? Porque é mais sonoro. Quando ele falou isso, já veio com um refrão e acabou compondo a música", acrescenta, citando a canção Abadá, lançada na folia daquele ano. >
No fim, o primeiro abadá virou a camiseta e um short - a segunda peça fez parte do conjunto por cerca de uma década, até ser deixada de lado porque os foliões preferiam usar suas próprias roupas para complementar o look. Mas, uma vez com o projeto de Pedrinho pronto, Hunfrey levou aquela primeira ideia para uma amiga - a designer e empresária de moda Angela Freitas, da marca AF. Na época, ela tinha uma confecção nos Barris. >
Quando o sócio do Eva chegou ao local, disse que precisava que a amiga produzisse uma peça para ele. "Eu disse: ‘claro, as costureiras estão aqui’. Ele disse ‘não, é segredo, ninguém pode saber’. Como ele sabia que eu modelava, sentei na máquina, cortei e costurei. Foi simples, porque a ideia era de Pedrinho. Eu só executei. Ele já levou um tecido com estampa para ter o efeito da peça, mas não era o definitivo", lembra Angela. >
Com aquele protótipo em mãos, era possível fazer as alterações na modelagem para produzir em larga escala. "O resultado final ficou muito bom, tanto que logo o mercado absorveu essa mudança. Foi um divisor de águas". >
Uma vez pronto, Hunfrey levou o protótipo para Pedrinho, que aprovou. Faltava que os demais sócios do Eva fizessem o mesmo e embarcassem na mudança. Na reunião semanal que faziam para discutir os assuntos do grupo, ele deixou a pauta para o final. "Foi meio que Bavi, mas o resto é história", brinca. >
A estampa escolhida tinha a temática dos signos e, quando o folião fosse retirar o kit, recebia um recorte com seu signo. "Ninguém poderia saber dessa mudança, porque, se vazasse, outros blocos poderiam copiar a ideia. Felizmente, conseguimos segurar ao máximo. O buchicho começou perto do Carnaval", lembra Hunfrey. As vendas se esgotaram e os abadás foram um sucesso. "Antes, nenhum bloco tinha topado. No outro ano, todo mundo virou", acrescenta Pedrinho. >
O Eva ainda teve dois momentos marcantes na história dos abadás. Um deles foi quando, em parceria com a grife Siberian, lançou a ‘Beca’, - uma camisa com gola polo e tecido que absorvia o suor. Depois, as roupas voltaram a se chamar abadás, sempre em conjunto com grifes. Atualmente, o abadá é em formato de camisa e produzido pela marca Ellus, que está à frente disso há dez anos. "O abadá mudou a história do Carnaval de Salvador. Hoje, o abadá é a fantasia oficial dos blocos e micaretas do Brasil, além de ter possibilitado a criação da Central do Carnaval, quando as pessoas passaram a ter a opção de comprar um abadá por dia e sair em mais de um bloco ou camarote", diz Hunfrey. >
Transformações >
Em pouco tempo, o surgimento dos abadás afetou toda a lógica de funcionamento do Carnaval. E tudo começou por uma mudança relativamente simples: a existência de um abadá para cada dia de desfile (em geral, três para cada bloco). >
Essa sugestão já tinha sido feita por Pedrinho da Rocha ao Eva, na época que criou o abadá, mas a diretoria do bloco resistiu. Na época, os blocos eram quase como torcidas de time de futebol - quem saía com um praticamente virava parte dele - e eles acreditavam que podia descaracterizar essa lógica. >
Quem primeiro embarcou nessa mudança foi o Cheiro. "A gente passou uns dois ou três anos usando um abadá só, mas depois a gente percebeu que as pessoas estavam trocando as fantasias entre si", lembra o empresário Windson Silva, fundador do Grupo Cheiro. Além disso, havia o problema de lavar de um dia para o outro, já que as pessoas suavam muito. "Foi irreversível. No ano seguinte, já tinha outros blocos fazendo". >
O Cheiro, inclusive, passou a fazer abadás com cara de fantasia. Icônicas, algumas são lembradas até hoje, como as de cowboy e cangaceiro. Depois, vieram abadás temáticos. "Acho que a gente deve sempre estar aberto a inovações, tem que estar antenado. A gente ficava muito ligado ao que os jovens queriam e tinha esse inconveniente de as pessoas ficarem suadas. O abadá está conseguindo ter uma utilização constante, resistir ao tempo, mas a gente tem que estar muito aberto a qualquer ideia inovadora que venha". >
Uma das novidades dos últimos anos foi o Colé, abadá em formato de colete utilizado pelos blocos da cantora Claudia Leitte, Blow Out e Largadinho, e de outras agremiações do grupo San Sebastian. >
De acordo com Pedrinho da Rocha, o colé foi inventado pela própria Claudia. "Ela fez para atender o público dela e me pediu para ser padrinho do processo. Eles observavam que as pessoas faziam a customização. Fizemos alguns juntos e acho legal ter essa diversidade", diz. Entre os modelos mais lembrados, estão os de marinheiro, ursinhos carinhosos e de jogadores de basquete. >
Hoje, os materiais dos abadás já incluem até tecidos com proteção. Saíram da serigrafia tradicional para a sublimação digital, o que permitiu a criação de estampas mais complexas, segundo a analista de indústria criativa Phaedra Brasil. As tendências para o futuro incluem desde a tecidos inteligentes para repelir odores até desenho em 3D pelo folião antes da compra e chips embutidos para compartilhamento instantâneo em redes sociais. >
"O futuro dos abadás parece apontar para uma convergência entre moda, tecnologia e experiência, onde a peça transcende sua função original para se tornar um portal de interações digitais e físicas, mantendo viva a tradição carnavalesca enquanto abraça as possibilidades do mundo contemporâneo. Seria o início do que posso chamar ‘carnaverso’?", questiona ela. >
Além disso, a personalização ficou cada vez mais forte. As camisetas podem virar tops e até vestidos. Para o criador da peça, Pedrinho da Rocha, não dá para ir contra o progresso. "As mulheres são a vanguarda da fantasia, porque os caras pegam do jeito que está e vai. "As mulheres são o catalisador dessa evolução".>
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