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Moyses Suzart
Publicado em 6 de dezembro de 2025 às 05:00
Sabemos que esporte é lazer, saúde e bem estar. Contudo, ele também pode ser vilão. E o limite entre ser benéfico e prejudicial pode trazer muitos riscos, inclusive a morte. Pessoas cada vez mais jovens, mesmo com o padrão de saúde e práticas de esportes de dar inveja, estão entrando em colapso e morrendo enquanto treina. Pior: boa parte delas estavam com exames periódicos regulares e sem doenças aparentes. O motivo pode estar numa palavra em inglês: overtraining, condição em que o corpo entra em exaustão por excesso de exercício, desencadeando uma série de efeitos físicos e emocionais. É, resumindo, quando o corpo diz “chega de tanto esporte!”. >
E olhe que nem estamos falando de atletas profissionais. São amadores que treinam como profissionais e desconhecem seus limites. Ou ignoram. E isso pode levar a tragédias anunciadas que estamos vendo com mais frequência nas ruas de Salvador, como um homem que morreu na Corrida do Martagão e uma corredora no último final de semana, que morreu num treino de rotina. Afinal, qual o limite entre o esporte saudável e nocivo?>
“O esporte se torna um vilão quando a paixão e a determinação superam a sabedoria e o respeito aos limites do corpo. Para o indivíduo destreinado, a linha entre o estímulo que gera adaptação e a sobrecarga que gera lesão é muito tênue. A busca por um estilo de vida ativo é fundamental para a saúde, mas a transição para uma rotina de treinos intensos, especialmente para atletas amadores, exige conhecimento e cautela. O esporte, quando praticado sem a devida orientação, pode rapidamente passar de aliado a vilão”, explica o médico David Sadigursky, ortopedista e membro titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. Ele é especialista em traumatologia esportiva.>
Este colapso acontece quando, segundo Sadigursky, a carga de treino (a soma de todo o estresse físico imposto) excede cronicamente a capacidade de recuperação do corpo. Inicialmente, o atleta pode até ver uma melhora na performance, mas está acumulando um "déficit de recuperação". Os tecidos não têm tempo de se reparar e fortalecer entre as sessões de treino. “O sistema nervoso central e o sistema hormonal entram em um estado de estresse crônico. O resultado é a Síndrome do Overtraining (OTS)”, explica o médico. >
Corrida do Martagão Gesteira foi realizada em Salvador
O segredo é justamente não pular etapas, como se estivesse fazendo uma arte marcial. “Falo pela corrida, que é um esporte que está crescendo muito. A pessoa pega o tênis e vai correr. Parece simples, mas é perigoso. Na corrida, devemos respeitar como se estivéssemos fazendo judô. Você começa na faixa branca ou já vai para a preta? É a mesma coisa. Tem que começar do zero e crescendo dentro do seu limite, passando de faixa, entende?”, explica Anderson Lopes, educador físico e sócio de um grupo de corrida. >
Ao contrário do que se imagina, treinar mais intensamente não significa automaticamente melhorar. Um dos sinais mais comuns de sobrecarga é justamente o rendimento estagnar ou piorar, mesmo com treinos intensos. Isso acontece porque o organismo, sem tempo adequado de recuperação, entra em um ciclo de estresse fisiológico. Junte isso ao fato de seu corpo não ter sido preparado para ser profissional, mas você acha que é, forçando a máquina. O perigo mora aí. >
O excesso de treinos pode levar a alterações no sistema imunológico, distúrbios do sono, mudanças hormonais e até impactos psicológicos, como irritabilidade, perda de motivação e ansiedade. Em casos mais graves, surgem lesões como tendinites, estiramentos recorrentes e fraturas por estresse. Percebeu que alguns sintomas são emocionais? Pois é. Já se fala, inclusive, em burnout esportivo. >
Este tipo de burnout não surge de um dia para o outro: é resultado de semanas ou meses em que o corpo e a mente operam acima da capacidade real, sem pausas suficientes. Na pior das hipóteses, o colapso pode acontecer num treino qualquer e terminar com fatalidade. Pode, inclusive, levar a uma reação contrária. Os sintomas incluem perda completa de motivação para treinar, sensação de fracasso, queda acentuada de desempenho e, em alguns casos, afastamento total da modalidade praticada.>
Se a mente já sente a sobrecarga, a parte física é ainda mais cruel. “Alguns sinais e sintomas precisam ser observados e assim ligar o botão de alerta para riscos iminentes: dor persistente e incapacitante para realizar a atividade, dor em atividades simples do dia a dia que antes não ocorriam, como subir e descer escadas, aumento da frequência cardíaca em repouso, maior ocorrência de gripes e resfriados, problemas com o sono, alterações no trato gastrointestinal, irritabilidade constante, entre outros. É hora de parar e procurar um especialista”, disse o Dr. Thiago Santos, especialista em dor, ortopedia desportiva e biomecânica. >
Empresária de 36 anos sofre parada cardíaca durante corrida
Como já foi dito, é preciso respeitar as etapas. Não é que um cidadão comum não possa se tornar um atleta intenso, mas não dá para querer ser da noite pro dia. “Tem gente que chega aqui para se matricular dizendo que quer fazer uma maratona em seis meses de treino, sendo que nunca treinou com acompanhamento. É preciso saber que existem etapas para que o esporte não se torne um risco”, conta Anderson. >
Além do preparo físico, é preciso também avaliação e acompanhamento multidisciplinar. Não adianta achar que um exame cardiológico é suficiente para achar que já é o Usain Bolt. “A avaliação pré-participação esportiva (PPE) é um pilar para a segurança do atleta, e embora a avaliação cardíaca seja vital, ela representa apenas o ponto de partida. Uma abordagem verdadeiramente preventiva deve ser holística, investigando o corpo como um sistema integrado. Focar apenas na biomecânica é insuficiente”, diz o médico David Sadigursky. Ele enumera quatro exames cruciais (confira quadro). A busca por um estilo de vida ativo é fundamental para a saúde, mas a transição para uma rotina de treinos intensos, especialmente para atletas amadores, exige conhecimento e cautela. E, principalmente, saber parar. Afinal, descanso também é treino.>
Outras avaliações importantes para o atleta: >
Musculoesquelética Detalhada: Investigação de lesões prévias, que podem deixar fraquezas ou desequilíbrios residuais. >
Estado físico geral e composição corporal: Avaliar o percentual de gordura e de massa muscular >
Nutricional e Metabólica: Uma dieta balanceada é um fator de risco frequentemente negligenciado. >
Biomecânica e de Movimento: análise da postura e dos padrões de movimento (como a corrida ou o salto).>
Thiana Biondo
Quando é hora de desacelerar?>
1. Cansaço que não passa>
Fadiga persistente mesmo após dias de descanso ou sono adequado.>
2. Queda no desempenho>
Dificuldade crescente em treinos que antes eram fáceis.>
3. Dores contínuas>
Dor muscular que dura vários dias>
4. Mudanças de humor>
Irritação, ansiedade, falta de motivação.>
5. Sono desregulado>
Insônia, dificuldade de adormecer ou sensação de sono não reparador.>
6. Adoecimento frequente>
Resfriados repetidos, baixa imunidade ou pequenas infecções.>
7. Lesões sucessivas>
Tendinites, estiramentos…>
8. Obsessão pelo treino>
Sentir culpa ao faltar treino, treinar mesmo com dor.>