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Thais Borges
Publicado em 27 de dezembro de 2025 às 13:21
Mãe Carmen de Oxaguiã não gostava de tristeza. Mesmo quando retornasse ao Orun - ao mundo espiritual -, seus filhos sabiam que nada acabaria ali. Por isso, durante o cortejo de despedida de uma das ialorixás mais longevas do Terreiro do Gantois, que percorreu importantes marcos religiosos da cidade, o sentimento era de reverência e respeito, mas, principalmente, de louvar seu legado. >
“É o retorno à ancestralidade. Não acaba com a morte. Ela vai viver para sempre em nossos corações”, explicava a filha de santo Maria Aparecida Ferreira, 58 anos, mais conhecida como Iyarobá Cida (um cargo semelhante ao das ekedis, as guardiãs dos cuidados com os orixás). “A emoção não é pela tristeza, mas pela pergunta que você me fez, que me fez lembrar de coisas que vou levar para a vida”, disse, à repórter, quando indagada sobre a convivência com a ialorixá. >
Cortejo de Mãe Carmen do Gantois
Desde as primeiras horas da sexta-feira (26), quando a comunidade soube do falecimento de Mãe Carmen, o movimento no Terreiro do Gantois, na Federação, foi intenso. Mas, foi neste sábado (27), que a maioria dos filhos, filhas, amigos e admiradores da Casa prestou suas últimas homenagens. >
A partir das 8h30, filhos e filhos da Casa começaram a sair do barracão, carregando coroas de flores. Alguns, em transe pela incorporação dos orixás, choravam a partida da mãe. Às 8h43, o caixão com o corpo da ialorixá deixou o barracão da Casa, pela saída para a Avenida Garibaldi. Entoando cantigas e visivelmente emocionados, um grupo de filhos de santo carregava o caixão. >
Das janelas e varandas nas Ruas Menininha do Gantois e Garibaldi, vizinhos acompanhavam a despedida. Respeitosamente, davam adeus a alguém que foi uma presença forte e constante na comunidade nos últimos 98 anos. Alguns batiam palmas junto aos adeptos do candomblé, outros registravam o momento pelo celular. >
O caixão foi colocado em um caminhão aberto do Corpo de Bombeiros. Em cima do veículo, além de três membros da corporação, três filhos da Casa acompanharam o caixão. De lá, o cortejo seguiu para a Avenida Vasco da Gama, onde parou diante de duas outras importantes casas de candomblé: a Casa de Oxumarê e a Casa Branca - dois dos terreiros mais antigos do Brasil, tal qual o Gantois. Na Casa de Oxumarê, filhos de santo daquela comunidade aguardavam a chegada. Ao lado do babalorixá Pecê, batiam palmas, em saudação, enquanto cantavam para Oxalá, o santo de Mãe Carmen. >
De lá, contornaram a Praça Lord Cochrane e seguiram para a Rua Lucaia e pela Avenida Juracy Magalhães. Na sequência, o cortejo percorreu as ruas da cidade até a Basílica da Conceição da Praia, no Comércio, e retornou até as proximidades do Hospital Theresa de Lisieux. O caminhão dos bombeiros foi seguido pelos outros veículos ao longo da Ladeira da Cruz da Redenção até o Cemitério Jardim da Saudade. >
Durante todo o percurso, moradores da cidade observavam a passagem do caminhão. Alguns batiam palmas, outros faziam fotos e vídeos com o celular. Mas ninguém deixava de observar, nem que fosse apenas por alguns instantes.>
Legado>
Um dos três filhos do Gantois que estava no caminhão dos Bombeiros foi o músico Yomar Passos, 67 anos, que tinha conversado com a reportagem pouco antes, ainda no Terreiro. Para ele, a despedida era sobre o legado de Mãe Carmen. “É a hora das homenagens, porque agora ela é ancestral”, contou. >
Yomar não apenas era filho de santo da Casa, mas sobrinho de criação dela. “É difícil falar porque ela era minha tia antes de ser ialorixá. Por isso, o sentimento é algo que você pode imaginar. É doloroso, mas ela deixa o legado”, explica. >
Para ele, uma das principais marcas de Mãe Carmen era a determinação que ela tinha, com tudo que era relacionado à religião. “O legado que ela deixa é esse. Minha família toda ficou por aqui, porque o Gantois é uma continuidade”. >
Alguns filhos, contudo, vieram depois. A iyarobá Cida Ferreira, por exemplo, chegou há nove anos. Ela e sua mãe frequentavam a casa de um filho de santo de Mãe Carmen que tinha ido embora. “Ele disse que nós não seríamos órfãs, que podíamos procurar ela. Quando cheguei, ela me recebeu de braços abertos. Disse: ‘minha filha, não se nega um pedido de Ogum”, lembra. >
Cida foi suspensa para o cargo, que tem a função de cuidar dos orixás e não entra em transe, aos dois anos de idade. Mas a iniciação só veio aos 48 anos, pelas mãos de Mãe Carmen. “Acontece na hora certa e com a pessoa certa. Ela era uma pessoa ímpar e tenho certeza de que a missão dela foi cumprida por louvor”. >
Em novembro, Cida cumpriu a obrigação de sete anos com a ialorixá. “Tive o privilégio de ter concluído o ciclo pelas mãos dela”. Radicada no Rio de Janeiro, a iyarobá chegou a Salvador na madrugada deste sábado para as despedidas e acompanhou o cortejo fúnebre. “Não tinha como não vir”. >