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Thais Borges
Publicado em 27 de dezembro de 2025 às 05:00
Numa sexta-feira, dia 25 de janeiro de 1991, a então chefe da tesouraria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Carmen Oliveira da Silva, se aposentou por tempo de serviço. Contadora, havia passado mais de 30 anos como servidora da Casa, e seguiu na área. Ainda ficou mais alguns anos atuando com contabilidade, até receber o chamado mais importante de sua vida: o de ialorixá do Terreiro do Gantois, trono que assumiu em 2002. >
Antes de se tornar a segunda ialorixá mais longeva do Gantois - atrás apenas de sua genitora, Mãe Menininha, que ficou 64 anos no cargo -, Mãe Carmen de Oxaguiã teve uma longa trajetória ligada aos números e finanças. "Ela era muito atuante, responsável, cumpridora dos deveres, independente de qualquer coisa. Era uma servidora pública exemplar", lembra a auditora jurídica do TCE Telma Almeida, uma das pessoas que conviveu mais de perto com Mãe Carmen, sobre os tempos da ialorixá na casa. >
Mãe Carmen do Gantois
Mais de três décadas depois, novamente numa sexta-feira, dia dedicado ao seu orixá de cabeça, Mãe Carmen fez outra despedida. Ela morreu nesta sexta-feira (26), aos 98 anos, após ter sido internada por sintomas fortes de gripe. A ialorixá está sendo velada desde o fim da manhã no terreiro e será sepultada neste sábado (27). >
Um relato comum entre os antigos colegas era de que Mãe Carmen era muito discreta com a religião, mesmo que todos soubessem quem era. "Ela nunca se apresentava como filha de Menininha do Gantois. Era uma profissional de excelência, com um relacionamento bom com todo mundo e que nunca demonstrou o interesse em assumir (o terreiro), tanto que, quando Mãe Menininha faleceu, foi a irmã dela", lembra o auditor de controle externo aposentado Jorge Vita, referindo-se a Mãe Cleusa Millet, que ficou à frente do Gantois entre 1989 e 1998. >
O atual presidente do TCE, Marcus Presidio, divulgou uma nota lamentando a morte da antiga servidora. Segundo ele, a atuação dela na Casa e sua liderança religiosa continuam como referências de dedicação, ética e compromisso com a sociedade. “Mesmo não tendo tido a oportunidade de conhecer Mãe Carmen pessoalmente, reconheço a grandeza de sua trajetória e a relevância de seu legado para a cultura, para a fé e para o serviço público baiano”, destacou. >
Vida pregressa >
Aos sete anos, a menina Carmen foi iniciada no candomblé. Filha caçula de Mãe Menininha, nasceu em Salvador, passou boa parte da vida como Iyalaxé (mãe do axé) do Gantois. Formada em contabilidade, entrou para o TCE nos anos 1960 e se tornou querida por todos. >
"Ela era amável com todos. Se preocupava com as pessoas e com a instituição, independente da condição dela no Gantois. E tinha o melhor abraço do mundo", lembra a auditora jurídica Telma Almeida. >
O carinho e o trato com os colegas também são lembrados pelo auditor jurídico aposentado João Roberto Muniz Ferreira. Quando ele entrou no TCE, Mãe Carmen já estava lá. "Era uma pessoa muito doce, carinhosa. Me chamava de Joãozinho. Fiquei de fazer uma visita a ela e não consegui. Ela cuidava de finanças, num setor que era subordinado à administração do tribunal. Era uma época que não existia concurso, mas depois de um tempo Dona Carmen e as outras pessoas que estavam antes dela passaram a ser estatutárias", diz. >
Auditora de controle externo do TCE há 46 anos, Maria do Carmo Galvão conviveu com Mãe Carmen primeiro através de sua mãe, hoje falecida, que trabalhava diretamente com a ialorixá. O tribunal era dividido entre setores e Carmen coordenava o setor que fazia a auditoria dos serviços públicos descentralizados e de economia mista. >
"Ela tinha que revisar o relatório de prestação de contas de toda a parte financeira de economia mista, autarquias e fundações", narra Maria do Carmo. "O trato com ela era muito bom, porque, quando os técnicos chegavam, o coordenador que tivesse livre que vinha atender. Mas muitos técnicos só chegavam quando ela estava disponível, porque ela tinha uma boa maneira de lidar", acrescenta. >
Entre os colegas, era sabido que Carmen acreditava que não assumiria o trono do Gantois. Tanto que, após a morte de Mãe Menininha, em 1986, foi sua irmã Cleusa quem foi confirmada para o cargo. Contudo, após a morte da irmã, em 1998, Carmen foi designada pelos orixás. >
"Já foi bem depois da morte da mãe. Carmen sempre respeitou tudo da mãe, mas não comentava sobre. Com a gente, era o dia a dia do trabalho mesmo", explica Maria do Carmo. >
Um dos aspectos mais lembrados da personalidade de Mãe Carmen é que ela era diplomática. Conseguia dialogar não apenas com pessoas com fé diferente, mas com políticos de diversas vertentes ideológicas. Em 1985, quando o TCE completou 70 anos de existência, ela promoveu uma visita ao Gantois. >
"Ela conseguiu promover o encontro de alguns políticos e de pessoas que vieram aqui ao Gantois. Foi um evento e ela planejou esse encontro. Tratava todos igualmente, porque tinha conselheiros do tribunal colocados por um governo, outros que foram colocados depois", afirma o auditor de controle externo aposentado Jorge Vita.>
Ialorixá >
O Terreiro do Gantois ficou três anos fechado após a morte de Mãe Cleusa Millet, para cumprir o luto. Até que, no dia 30 de maio de 2002, em uma festa para Oxóssi, o terreiro foi reaberto e Carmen foi confirmada como ialorixá. Na época, em entrevista ao CORREIO, admitiu que não passava pela sua cabeça inicialmente que seria a líder da Casa. >
“Aconteceu como sempre aconteceu e continuará acontecendo: naturalmente”, disse, sobre o processo de sucessão. Cerca de três mil pessoas acompanharam a cerimônia. “A missão é mais grandiosa porque aqui sou responsável não só pelos meus filhos, mas também pelos filhos de Mãe Cleuza e Mãe Menininha. Peço ajuda de Deus e dos orixás”, declarou, na ocasião, segundo a cobertura do jornal. >
Uma das marcas da liderança de Mãe Carmen é justamente a continuidade, na avaliação do antropólogo e museólogo Raul Lody, organizador de um dos principais livros sobre o Gantois - o catálogo Memorial Mãe Menininha do Gantois, homônimo do espaço para visitação inaugurado em 1992.>
"A continuidade é uma das características dos terreiros de candomblé com laços de consanguinidade, com a transferência do poder religioso de uma mesma família. Tudo é muito integrado a esse legado, à história da própria Mãe Menininha e suas antecessoras", diz. >
O Terreiro do Gantois é um dos únicos do Brasil que preserva, em sua direção, uma descendente direta das africanas fundadoras do primeiro Candomblé de origem iorubana. Na Casa, há uma estrutura familiar de manutenção de laços parentais. Assim, as dirigentes são sempre mulheres, segundo critérios de hereditariedade e consanguinidade. >
"Mãe Carmem deu continuidade com muita sabedoria, grande dignidade. Foi uma mantenedora, uma guardiã preservadora, com seu entendimento muito amplo e muito sensível. Era uma pessoa de muito diálogo, sensível e inteligente", acrescenta Lody. >
O Gantois, hoje, faz parte da Rota dos Orixás, que é o principal roteiro afrocentrado da empresa de viagens Bahia Turismo e Arte. O tour promove a visita de espaços sagrados como a Casa de Iemanjá, o Dique do Tororó e a Lagoa do Abaeté, além do próprio Gantois. >
Para a CEO da empresa, Tâmara Azevedo, a sacerdotisa entendeu que só é possível combater o preconceito com conhecimento. “Mãe Carmen nos ajudou muito ao abrir a casa para o Agroturismo. Foi uma grande incentivadora do nosso trabalho e deixou viva a memória de Mãe Menininha com a construção do Memorial”, analisa. >
Repercussão>
O presidente Lula (PT) e a primeira-dama Janja da Silva manifestaram pesar pela morte de Mãe Carmen do Gantois. “Que os ensinamentos de paz e de diálogo de Mãe Carmen sigam sempre entre nós”. >
Autoridades municipais e estaduais também lamentaram, ao longo do dia, a morte de Mãe Carmen. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, decretou luto oficial de três dias. O prefeito de Salvador, Bruno Reis, destacou o legado espiritual, cultural e humano deixado pela ialorixá. “Com profundo pesar, Salvador se despede de Mãe Carmen do Gantois, uma mulher de muita sabedoria e amor ao próximo, cuja trajetória deixa um legado imenso de preservação da ancestralidade e de cuidado com as pessoas. Mãe Carmen seguirá como luz a guiar caminhos e a fortalecer nossa cidade, seguindo os passos de sua mãe”, afirmou.>
A vice-prefeita e secretária municipal de Cultura e Turismo, Ana Paula Matos, destacou que o legado de Mãe Carmen à frente de um dos mais antigos e fundamentais territórios de espiritualidade de matriz africana do país permanece vivo. “A filha de Mãe Menininha do Gantois foi guardiã de um patrimônio que une fé, cultura, memória e resistência. Sua trajetória fortaleceu o diálogo inter-religioso, a formação cultural, as ações sociais e a preservação dos saberes ancestrais que moldam a identidade de Salvador”.>
O ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, lamentou o falecimento da ialorixá e destacou que ela conduziu o Gantois com dignidade, fé e serenidade. “Tive a honra de conviver com Mãe Carmem e levarei comigo, para sempre, os momentos inesquecíveis que vivi em sua casa, o nosso Gantois. A Bahia se despede de uma grande referência espiritual, cultural e humana”.>
Em nota, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA) pontuou a relevância dos terreiros na formação dos pilares da cultura afro-brasileira. “Lideranças como Mãe Carmen são cruciais nessa construção social que preserva tradições, ancestralidade e atos de cuidado e acolhimento com as comunidades”, afirmou a pasta.>
Artistas como Maria Bethânia, Regina Casé, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Carlinhos Brown homenagearam a ialorixá. Maria Bethânia foi uma das primeiras a se manifestar. A cantora escreveu: “Profunda reverência”, ao compartilhar uma imagem de um de seus shows, em que a foto da ialorixá aparece projetada no telão.>
Um sonho>
Discreta, Mãe Carmen se abriu com a extinta Coluna Vip, do CORREIO, em 29 de abril de 2012. Na ocasião, revelou que uma lembrança inesquecível foi o nascimento das filhas, Ângela e Neli Cristina. Contou, ainda, um sonho que tinha: "Ir à África e conhecer Abeokuta, no sudoeste da Nigéria". >
Para ela, o melhor de Salvador era o Gantois. O pior, a violência. Citou Deborah Kerr e Roberto Carlos como referências de cinema e música, respectivamente, e elegeu Lily Marinho como uma pessoa elegante. "Ela tinha consciência de ser quem era e agia com muita simplicidade". >
As qualidades que não podiam faltar a uma ialorixá, na sua opinião, eram competência e ética. Hipocrisia era o que mais a deixava chateada, enquanto sua maior felicidade era ver a família e os amigos felizes. Uma saudade? Não tinha. "Eu vivo o momento". Medo? "Desconheço". Arrependimento? "Não existe". >
De servidora exemplar à ialorixá longeva: a história de Mãe Carmen do Gantois