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Thais Borges
Publicado em 23 de agosto de 2025 às 05:00
No primeiro dia de aula no curso de Engenharia Mecânica, o então estudante Fernando Andrade levantou a mão para fazer uma pergunta. Começou a falar e os colegas notaram que ele era uma pessoa que gagueja. Fernando sofreu bullying imediato. “O resultado disso foi que me formei em cinco anos sem fazer mais nenhuma pergunta em classe”, lembra ele, hoje engenheiro aposentado e com 62 anos. >
O episódio na faculdade viria a se repetir em outros momentos na vida - da escola até os anos em que passou como executivo de empresas automobilísticas, como a Mercedes Benz e a Ford. "Qualquer ambiente de trabalho, por mais que seja acolhedor e as pessoas sejam treinadas, sempre vai ter competição. E às vezes as pessoas acabam atingindo quem gagueja através da gagueira", analisa. >
O ambiente de trabalho - com todos os aspectos que vêm dele, como o estresse, a ansiedade e a pressão por resultados - é apontado como um dos mais desafiadores para pessoas que gaguejam. Em todo o mundo, pesquisadores e entidades de saúde estimam que 1% da população gagueje. >
"Existe um grupo de trabalhadores que têm dificuldades em ocupar oportunidades de trabalho pelo simples fato de serem pessoas que gaguejam", diz o procurador do trabalho Ilan Fonseca, do Ministério Público do Trabalho na Bahia (MPT-5ª Região). >
O órgão vai promover, em parceria com a Associação Brasileira de Gagueira (Abra Gagueira), o Encontro Nacional de Pessoas que Gaguejam e Proteção Jurídica do MPT. O evento, previsto para a próxima sexta-feira (29), no auditório do MPT, no Corredor da Vitória, a partir das 8h. "O que levou a gente a encampar, com a Abra Gagueira, foi justamente a invisibilidade. Existe um grupo de trabalhadores que são vítimas de preconceito e discriminação pelo simples fato de terem dificuldade na fala", acrescenta Fonseca. >
Constrangimento>
Durante a faculdade, o engenheiro mecânico Fernando Andrade decidiu focar nos estágios após sofrer bullying ao gaguejar enquanto fazia uma pergunta na sala de aula. Pelo resto do curso, se tinha perguntas, recorria apenas aos livros para saná-las. A zombaria, contudo, continuou em outros ambientes. Sentia problemas em entrevistas de emprego, mas depois de um estágio em uma montadora, foi chamado para trabalhar na Mercedes-Benz, onde ficou por 15 anos. De lá, começou a trabalhar na Ford até que, em 2012, veio para a antiga fábrica da multinacional na Bahia. >
"Trabalhei na Europa, em países como Alemanha e Inglaterra e já fui muito a trabalho a lugares como Índia, Austrália, China, Chile. Em qualquer país, em qualquer idioma, sempre tem aquele olhar. A gente sofre bullying no mundo inteiro", lembra. Já adulto, chegou a fazer acompanhamento com uma fonoaudióloga, mas não conseguiu ter a frequência necessária por conta das viagens que tinha que fazer. >
Ele chegou a ter depressão e ansiedade, por conta das situações de constrangimento que passava na última empresa em que trabalhou. "Mesmo com cargos (de executivo), sempre tinha deboche. Me mandavam piadinhas no YouTube sobre gagueira. Quando eu estava no corredor, comentavam ‘e aí, gaguinho’. E uma das coisas que me afetava muito era quando entrava em uma reunião e via as pessoas com aquele olhar, fazendo um comentário com o amigo do lado. Isso vai minando a gente. Chegou uma hora que não aguentei", conta. Hoje, ele se dedica à causa e é um dos membros da Abra Gagueira. >
Para a contabilista Zulmira Melo, 56, um dos episódios mais marcantes foi quando ouviu um colega de trabalho pedindo ao gerente de ambos que a demitisse. Ele dizia que ela não estava "à altura" da empresa e que colocaria a marca em uma situação vexatória. Num outro momento, teve que ligar para um cliente, mas não conseguiu controlar a trava e a repetição da comunicação naqueles segundos iniciais. >
"Foi uma situação humilhante que estou chorando por lembrar. Gaguejei muito. Muito mesmo. A pessoa do outro lado da ligação achava que a chamada estava falhando e começou a me ofender e falar palavrões", conta. A rotina de trabalho continua sendo estressante. "Minha rotina é como se eu estivesse 24 horas em constante estado de alerta para não gaguejar e me manter falando fluentemente - coisa que não acontece". >
Assédio>
A gagueira é um distúrbio na fala ou na fluência, como explica a fonoaudióloga Laís Porto, professora da Unijorge. Ela ressalta, porém, que ninguém é 100% fluente na fala. "A gagueira não tem cura, é para a vida toda. Mas a gente consegue minimizar, entendendo que nunca vamos alcançar 100% porque todo mundo tem disfluência", reforça. >
Por se tratar de uma condição multifatorial, a recomendação de tratamento também é multiprofissional, incluindo psicólogo. Em geral, a pessoa que gagueja pode apresentar disfluência maior em ambientes de estresse - como o espaço de trabalho. Além disso, é um quadro neurológico e genético. O diagnóstico pode ser fechado por volta dos 7 anos, mas é possível perceber alguns prolongamentos, bloqueios ou repetições mais cedo. >
Laís garante que é possível fazer o tratamento mesmo na vida adulta. "O que acontece é que até os 5 ou 6 anos, o cérebro da criança aprende muito mais rápido por conta da neuroplasticidade. O adulto consegue minimizar a gagueira, mas eu diria que vai ser mais demorado". >
Provocar constrangimento em alguém no ambiente de trabalho pela gagueira pode ser assédio moral e discriminação, segundo o procurador do trabalho Ilan Fonseca. >
"Uma prática que esse tipo de assédio traz é não permitir que esse trabalhador suba a posições hierárquicas ou que ocupe apenas trabalhos braçais, sem papel de liderança. Esse tipo de bullying começa na escola, mas vai para o ambiente de trabalho e todos os outros setores", diz. >
O MPT ainda não tem dados de denúncias, mas, após o evento, o procurador diz que espera que elas sejam registradas. Uma empresa que infringe a legislação trabalhista pode ter que pagar multas e assumir compromissos públicos de reparação. Um trabalhador que se sentir prejudicado também pode mover uma ação judicial de forma individual. "A gente já tem um canal de denúncias, mas queremos publicizar. A denúncia é totalmente sigilosa", garante Fonseca. O canal no site é https://mpt.mp.br/pgt/servicos/servico-denuncie. >