Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
História real vivida pelo comediante escocês Richard Gadd já passou dos 22 milhões de views desde que estreou na Netflix
Priscila Natividade
Publicado em 4 de maio de 2024 às 05:00
Oferecer um chá para uma pessoa que parece triste e acabou de entrar por um acaso em um bar londrino qualquer. Até aí, tudo bem. Ou não. Principalmente quando o fato desencadeia uma sequência de eventos devastadores na vida do garçom que deixou a bebida por conta da casa. Mais de 41 mil e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 744 tweets, 46 mensagens no Facebook, 106 páginas de cartas e inúmeros presentes. A história real contada em sete episódios na minissérie Bebê Rena (Netflix) é um dos títulos mais vistos da plataforma, no primeiro lugar do top 10 de séries no Brasil.
Escrito e protagonizado pelo comediante escocês Richard Gadd, com Jessica Gunning e Nava Mau, Bebê Rena estreou no dia 11 de abril. A minissérie é inspirada na experiência vivida por Richard Gadd, que, além de protagonista, responde também pela criação, produção e roteiro. Gadd interpreta o comediante Donny Dunn, que sonha em se tornar famoso. Até lá, mora de favor com a ex-sogra e trabalha como garçom.
O caos se instala na monotonia rotineira de Dunn, quando Martha (Gunning) entra em cena. Daí para frente, os dois passam a viver uma relação mórbida e perturbadora de assédio. Claro que tramas de perseguição, suspense e drama não são novidades. Mas, então, por que a produção surpreende tanto?
Quem responde é o professor de roteiro do Centro Universitário Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Thiago Costa: “A série mostra, de forma crua vários tipos de violência. Em Bebê Rena, a realidade está ali. Ou seja, o fato de ser uma história real indica que toda aquela violência pode estar mais perto do que imaginamos. É uma das séries mais ousadas dos últimos anos. Uma produção que toca em feridas profundas da sociedade, como as situações de perseguição, abuso, além da masculinidade tóxica”.
A minissérie já alcançou 22 milhões de views na semana de 22 a 28 de abril e está na primeira posição do top 10 global da Netflix por três semanas seguidas. A produção ocupa o topo das 10 mais assistidas em 92 países, entre eles o Brasil e foi sete vezes mais assistida do que a recém-lançada Garotos Detetives Mortos, segunda posição do ranking, com 3,1 milhões de visualizações. Não querendo dar aqui nenhum spoiler, mas o beco do medo, da frustração e do que cada um é capaz de fazer para ser aceito é (bem) mais sombrio.
“Além da temática e da abordagem corajosa, especialmente por tratar de abuso contra uma pessoa do sexo masculino, algo que não costumamos ver, trata-se justamente da experiência do autor e protagonista, o que sem dúvida nenhuma é um enorme destaque. Donny é um homem que sofre muito e esse sofrimento, entre outros motivos, vem do fato dele não se encaixar em nada. Isso faz com que o espectador o acompanhe, se afeiçoe e sofra junto com ele, deixando toda aquela violência ainda mais agoniante”, analisa o pesquisador.
Se por um lado, Martha demonstra de imediato um comportamento obsessivo, Donny também encontra na sua perseguidora uma espécie de compensação para o seu medo de rejeição. O espectador espera uma coisa, mas se depara com uma virada na história.
É inevitável se questionar por que o garçom não denunciou a stalker. Afinal, Martha não era uma sonhadora em busca de um príncipe, assim como o comediante também não era apenas perturbado por suas fragilidades. A questão aqui é sobre o que as pessoas são capazes para se sentirem pertencentes na sociedade?
Para a psiquiatra e professora do Indomed Alagoinhas, Simone Paes, a série traz uma diversidade de temas intensos e mobilizadores desde o início. O grande vilão, no entanto, é o medo: seja da solidão, da exposição das fragilidades ou da vulnerabilidade “As pessoas são capazes de se submeter a diversas situações humilhantes e destruidoras para não serrem rejeitados. O medo da solidão aprisiona em relacionamentos abusivos de toda ordem. Quando a pessoa não se ama o suficiente só sobrevive emocionalmente a partir do amor de um outro. Entre a ausência de afeto e o afeto negativo, ela se transforma em alguém que se agride e pode agredir”, pondera Paes.
A psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e professora de psicologia da UniRuy Wyden, Bárbara Guimarães, concorda. Donny despreza, mas sente pena de Martha. Assim, a perseguição vai ganhando outros contornos:
O stalker tem dificuldade de lidar com controle de impulsos, de interpretar a si mesmo e outras pessoas, vive uma oscilação entre afetividade e sensação exagerada de abandono, além de apresentar um padrão de mentiras repetitivas, como explica a professora do curso de Psicologia da Universidade Salvador (Unifacs), Fernanda Machado. Ela chama atenção para a baixa rede de apoio nessas situações: “O trauma afeta autoestima, apresenta ambiguidade de sentimentos e dificuldade em elaborar a experiência traumática e, através de aspectos inconscientes, pode projetar a ‘saída’ em objetos externos. É preciso olhar mais para as pessoas ao nosso redor e prestar atenção nelas”.