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Quem se interessa pelas empregadas?

Mesmo sem ter lido Pequenos Burgueses, de Gorki, ou assistido a Entre dois mundos, em cartaz na Saladearte, vamos refletir o quanto somos rudes com os empregados

  • Foto do(a) author(a) Tharsila Prates
  • Tharsila Prates

Publicado em 19 de julho de 2025 às 05:00

Filme francês Entre dois mundos
Filme francês Entre dois mundos, com Juliette Binoche Crédito: Divulgação

Disse a uma amiga esses dias que eu não estava gostando da peça Pequenos Burgueses, de Gorki. Fomos ao teatro ver outra coisa e, na volta, retomei a leitura mesmo assim.

No dia seguinte, tirei a tarde toda para ir ao cinema e encontrar outra amiga. A leitura ficou suspensa. O filme era Entre dois mundos, estrelado por Juliette Binoche. Ela interpreta uma escritora, Marianne, que se faz passar por faxineira para criar uma história sobre desemprego, precariedade do trabalho, invisibilidade e crise.

A escritora de sucesso escolhe lavar vasos sanitários imundos de banheiros públicos, arrumar camas de quartos de uma balsa (que leva passageiros da França a Inglaterra), renunciar a uma vida confortável para viver em uma cidade onde não conhece ninguém, inventando sua vida pregressa – menos o nome (spoiler: isso é o que irá denunciá-la mais tarde).

O filme é dirigido por Emmanuel Carrère, que também assina o roteiro com Hélène Devynck, em uma livre adaptação de uma história escrita pela francesa Florence Aubenas. Carrère, que tem uma carreira como crítico de cinema e é escritor, está em seu segundo longa-metragem. Entre dois mundos é um filmaço, ainda em cartaz na Saladearte (Cine Daten Paseo, Sala 2, diariamente, às 13h20). Recomendo fortemente.

Sobre filmes em geral, uma das minhas irmãs costuma sempre perguntar se o final é feliz. Pensando um pouco, dá quase para adivinhar. Nessa vida inventada em uma cidade a 230 km de Paris, Marianne conhece pessoas, estreita laços, faz amizades e tem – poucos e passageiros – impulsos de contar a verdade, contar quem é e o que está fazendo verdadeiramente. Até que descobrem. E aí a reação vai de cada um, o quanto se é afetado por aquilo.

Mas não existem happy ends. Filmaço. A tarde de domingo foi ganha graças aos talentos do cineasta, de Binoche e das outras atrizes, que, li, não são profissionais.

As atrizes Hélène Lambert e Juliette Binoche em cena de Entre dois mundos
As atrizes Hélène Lambert e Juliette Binoche em cena de Entre dois mundos Crédito: Divulgação

Para encerrar o dia, voltei a Gorki. No ato de número IV, a personagem Pólia, 21 anos, que trabalha por diária em casas particulares, descreve um estudante da pensão como um homem bom e corajoso. E justifica: “É só perceber uma injustiça e [ele] já vai contra... Viu, se interessou pela empregada. E quem é que se interessa pelas empregadas? E pelas pessoas que trabalham para os ricos? E, entre os que se interessam, quantos são os que se arriscam a defender?”.

Olhei Pequenos Burgueses com outros olhos, já atravessados pela história de Carrère, chamado a filmar Entre dois mundos pela própria Juliette Binoche. O estudante da peça havia brigado com um antissemita, que, mesmo se dizendo um intelectual, teve a indecência de proibir a empregada de ir à escola, porque, quando ele precisou, a moça não estava lá para abrir a porta.

Agora, ainda que não tenha lido Gorki ou assistido a Entre dois mundos, pense se já não cometeu alguma injustiça com empregados. É sobre jornada, horas trabalhadas, folgas, férias, direitos, concessões, permissões...

‘Ah, não tenho empregados.’ Certo. E como age diante de porteiros, faxineiros, diaristas, entregadores, camareiros, motoristas, zeladores e tantos outros? Ao andar a pé enxerga os garis? Cumprimenta-os? Dá descarga nos banheiros públicos ou esquece? Faz xixi no vaso? Joga o papel no lixo? Retira a bandeja das mesas na praça de alimentação? Deixa o quarto de hotel revirado? Quem você pensa que limpa e arruma tudo isso? A máquina? Que máquina?

É gente mesmo. Gente de carne e osso como nós.

No mesmo dia do teatro, a garçonete da pizzaria aproveitou os ouvidos atentos meus e da minha amiga para dizer que se preocupava com a mãe, que estava cuidando sozinha da avó doente, do outro lado da Baía de Todos-os-Santos, e que o filho dela morava com as duas. Ela, sem tempo por causa do trabalho e com apenas uma folga semanal, não tinha condições de dar suporte. Trabalho? Não, jornada 6x1. O salário mal dá para o aluguel, o supermercado, os remédios e algumas coisinhas de mulher, como ela disse. Está sobressaltada. A pressão nos ares.

Outro dia, em um balcão de restaurante a quilo, ouvi a atendente se queixar: "Falta gentileza. Muitos clientes não dão nem bom dia, boa tarde..."

A França de Carrère e Binoche, e o submundo do capital, é logo aqui. E (pasme!): lá não tem só a Torre Eiffel e o Rio Sena.

Mas quem se interessa pelas empregadas? Quantos são os que se arriscam a defendê-las? Viva Gorki.

P.S.: Em uma cena do filme, enquanto abastece o carro, Marianne flagra a amiga faxineira, jovem, 3 filhos, mexendo na bolsa que ficou no carro. Imagine o que a gente não vai pensar! Mas só vendo para saber do que uma faxineira é capaz.