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'Violações com potencial danoso absurdo': entenda a adultização precoce

Com vídeo de Felca e prisão de influencer, denúncias aumentaram no país; MPT na Bahia investiga casos de exploração de trabalho infantil na internet

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 16 de agosto de 2025 às 05:00

Com vídeo de Felca, denúncias de exposição de crianças aumentam no país
Com vídeo de Felca, denúncias de exposição de crianças aumentam no país Crédito: Ilustração: Quintino Brito

A pressão para ter o próprio celular começa cedo. De repente, os coleguinhas da escola ou do bairro já têm seu próprio celular e até perfis em redes sociais. Na casa da médica Andréa Strauch, 45 anos, ela já imaginava que teria que lidar com essa demanda quando a filha Lara completou 9 anos.

Na mesma época, Andréa leu o livro A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt, e tinha assistido à série Adolescência, da Netflix. Estava preocupada com os efeitos do uso de smartphones e redes sociais em pessoas tão jovens - dos índices de depressão e ansiedade às taxas de suicídio. “Entre as mães, a gente sempre conversava sobre essa dificuldade e como seria na hora que todo mundo tivesse celular. É difícil dizer não. Até que falei com essas mães e criei um grupo de apoio, para compartilhar informações com mais gente que também não vai dar o celular antes dos 14 anos”, explica a médica.

Seis meses depois, o grupo criado por Andréa no Whatsapp já tem 99 pessoas. A preocupação principal delas é a mesma de outras famílias: garantir que as crianças e adolescentes vivam todas as fases da vida, com as experiências esperadas para cada faixa etária. Ou seja: sem apressar nada e sem provocar a chamada ‘adultização' precoce.

A expressão ganhou força no noticiário brasileiro, desde que o youtuber Felca publicou um vídeo com esse título, no dia 6. Até sexta-feira (15), mais de 40 milhões de pessoas tinham assistido aos quase 50 minutos do vídeo, além dos que viram os cortes menores em plataformas como o TikTok e o Instagram (somadas, as duas tiveram 186 milhões de visualizações).

Logo nos instantes iniciais, Felca anuncia que o assunto era grave e que, ali, faria uma denúncia. Ele aborda temas como os ‘coaches mirins’ - crianças que dizem atuar como empresárias e produzem esse tipo de conteúdo. Mas uma das partes de maior repercussão da denúncia foi sobre influencers como Hytalo Santos, preso na manhã nesta sexta-feira, em São Paulo, suspeito de exploração sexual infantil e tráfico humano. O marido do influenciador, Israel Vicente, também foi preso.

Segundo Felca, eles monetizam com conteúdos que sexualiza crianças e adolescentes. "A problemática maior é que, dentro do público do Hytalo Santos, existem adolescentes que assistem. Existem mães de filhos que assistem, por qualquer motivo. Mas existem também, nesse público, homens adultos", diz, em um dos trechos de seu vídeo.

Com a repercussão do vídeo, o número de denúncias de “pornografia infantil” online recebidas pela SaferNet aumentou 114% em apenas seis dias. De acordo com a ONG, entre o dia 6 até a última terça-feira (12), foram 1651 denúncias únicas. No mesmo período do ano passado, o canal de denúncias da entidade registrou 770 denúncias. Nesta semana, o Disque 100, canal de denúncias de violações de direitos humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), também recebeu mais de mil notificações.

Na última quarta-feira (13), o presidente Lula anunciou que vai enviar um projeto de lei para a regulamentação das redes sociais. "Não dá para abrir mão de garantir tranquilidade às crianças e adolescentes do país, que podem ser vítimas de bullying, de ataques, como nós vimos na denúncia do rapaz (Felca)", disse, em entrevista à BandNews FM. “O que é crime na nossa vida normal tem que ser crime na vida digital", pontuou Lula.

Comportamentos

Na prática, adultização é um termo ‘guarda-chuva’ - ou seja, que inclui diversas formas de crianças e adolescentes reproduzirem comportamentos de adultos porque estão expostos a conteúdos impróprios para sua idade. Entre as possíveis consequências desse processo estão a preocupação excessiva com relações amorosas, erotização e sexualização, além da preocupação excessiva com aparência física e com padrões de beleza, como explica a promotora Ana Manuela Rossi, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Criança e Adolescente (Caoca) do Ministério Público da Bahia (MP-BA).

"Eles acabam por comprometer o desenvolvimento e por produzir dificuldades de socialização e baixa autoestima. Ao invés de terem momentos de brincadeira e aprendizado, começam a buscar uma vida que não será adequada para sua condição de desenvolvimento", afirma. Ela orienta que famílias e responsáveis supervisionem o uso das tecnologias. "O que vem acontecendo é um acesso cada vez mais cedo".

O desembargador Salomão Resedá titular da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia (CIJ-TJBA), explica que os juízes de infância já vêm pedindo, aos pais, maior controle e cuidado com exposição digital. "É preciso chamar atenção para a família, para os pais, que eles também têm responsabilidade para com os filhos, para evitar que tenham acesso a conteúdos desaconselháveis", diz.

Ele lembra que o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet - que exigia o descumprimento de ordem judicial específica para que os provedores de aplicações de internet fossem responsabilizados civilmente por danos causados por conteúdo publicado por terceiros. No entanto, a Corte julgou, em, junho, que essa norma já não é suficiente para proteger direitos fundamentais e a democracia.

O acórdão do STF, contudo, não foi publicado ainda. "Nós, magistrados, estamos também na frente de combate, mas ainda não temos mecanismos específicos para assim proceder. Estamos vivendo uma expectativa para que a gente possa aplicar regras específicas. No ECA, a exibição de cenas eróticas é punível como crime, mas não com a especificidade que o momento exige", acrescenta, referindo-se ao Estatuto da Criança e Adolescente, que completa 35 anos em 2025.

Celular

Foi pensando nessas consequências que a médica Andréa Strauch criou o grupo de mães que pretendem dar um celular aos filhos somente após os 14 anos. "Aqui em casa, já falei que o celular vai ser o presente de 15 anos se a orientação não mudar. Se mudar, vai ser acordo com o que as Sociedades Brasileiras de Psiquiatria e Pediatria indicarem", enfatiza.

O que começou com apenas 10 mães da escola onde Lara, sua filha, estuda, cresceu para quase 100 pessoas. A menina não tem perfis em redes sociais e não acompanha influencers. Ela tem um tablet, mas sem aplicativos como YouTube, Whatsapp, Instagram e TikTok ou jogos que possam ser acessados online. O uso é restrito e somente com supervisão.

"Ela chega às 15h30 da escola e, até eu chegar do trabalho, não pode nem ligar a televisão. Ela pode brincar no play, fazer algo sem telas. Quando eu chego à noite, pode ficar uns 30 minutinhos no tablet, comigo ao lado. A gente pode tentar ao máximo segurar essa infância e o brincar. Por sorte, ela ama ler e desenhar", explica Andréa.

Ela acredita que as famílias precisam estar atentas aos perigos da exposição online. "A internet é um campo para pedófilos. Quando você dá o celular, está dando o portal para chegarem nela (na criança). A gente acha que o filho está seguro dentro de casa, mas às vezes são mais perigos do que na rua".

A iniciativa do grupo de mães em Salvador foi inspirada no Movimento Desconecta, criado em São Paulo no ano passado por outras seis mães que viviam o mesmo dilema. Uma das fundadoras do Movimento, Antônia Brandão explica que o objetivo era tentar inverter a ordem: sair de um cenário em que a maioria das crianças ganha um celular próprio mais cedo para um em que elas só ganhassem um aparelho aos 14 anos e só tivessem redes sociais aos 16.

"A gente montou uma metodologia simples, de cinco passos, onde um líder - uma mãe ou um pai - se inscreve no nosso site, monta uma comissão de trabalho na escola e aproveita os canais de comunicação para chegar a esse acordo com as famílias. Paralelamente, a gente vem atuando em políticas públicas", diz Antônia, que cita o engajamento da campanha na proibição de celulares nas escolas, aprovada no ano passado.

Hoje, já são mais de mil líderes inscritos em todo o Brasil. A página do Desconecta no Instagram tem mais de 84 mil seguidores. "Não é um movimento anti-tecnologia, de forma alguma. A gente trabalha para trazer a conscientização e o melhor uso dela da forma mais adequada para cada faixa etária".

Responsabilidade

O MP-BA é um dos órgãos que atua na identificação de situações de exposição indevida da imagem de crianças e adolescentes no ambiente digital. A partir da identificação dos perfis, pode adotar providências para reprimir e para proteger o público infantojuvenil.

"Os crimes e as violações acontecidas no ambiente digital têm um potencial danoso absurdo pela possibilidade de amplificação", pontua a promotora Ana Manuela Rossi, do Caoca.

Entre as denúncias mais comuns que chegam ao MP, estão as de imagens usadas para práticas de cyberbullying e deepfakes (conteúdo falso de imagem com alterações como no som ou na voz), expondo a criança ao constrangimento. Outras ocorrências são de divulgação de pornografia, ingresso em redes de pedofilia e exploração da imagem da criança para divulgar bens, produtos específicos e jogos online (veja mais ao lado).

Por vezes, o compartilhamento de imagens até de forma inocente, por pessoas da família, pode transformar as crianças em alvo de abusadores. "Se algum responsável submeter a criança e adolescente ao constrangimento, também pode responder. Mas a gente vê constantemente pessoas que acabam fazendo isso sem ter consciência dos riscos a que estão expostos. Há criminosos contumazes que se utilizam dessas oportunidades", completa.

A proteção passa a ser tarefa de uma rede que inclui famílias, escola, as comunidades da qual crianças e adolescentes fazem parte e operadores das políticas públicas.

"Cada um se responsabilizando e fazendo um trabalho articulado que reconhece que cuidar de uma criança uma tarefa muito complexa. Só um setor ou adulto responsável muitas vezes não dá conta", diz a professora Vládia Jucá, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Vládia é autora do Guia para a articulação entre as escolas e a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, produzido pelo D³e – Dados para um Debate Democrático na Educação, em parceria com a B3 Social.

"O tempo de uma infância protegida envolve brincar, que não é só passar tempo. Brincar é poder experimentar a capacidade de criação, de invenção, de simbolizar. É poder criar relações de confiança e viver essas relações de confiança", explica.

De acordo com ela, isso é fundamental para que, na vida adulta, crianças e adolescentes consigam participar de laços sociais, saibam lidar com as frustrações e se portar em situações que geram ansiedade. Muitas dessas respostas vão depender de como a pessoa viveu a infância.

Ela acredita que a adultização não deve ser um assunto que concerne apenas a famílias de crianças ou a escolas, mas de qualquer pessoa, uma vez que diz respeito à sociedade que está sendo construída. "Falar disso é falar de como vai ser nossa experiência de vida coletiva, como está sendo e como isso vai ser processado, que tipo de vida conjunta a gente vai continuar a ter. Quando a gente fala mal da sociedade, porque ‘os jovens são isso, são aquilo’, a gente está falando do resultado de um processo".

MPT investiga casos de trabalho infantil na internet na Bahia

Entre as formas de adultização, há, ainda, a exploração do trabalho infantil. Em seu vídeo, o youtuber Felca destacou que os conteúdos com crianças e adolescentes são monetizados por influenciadores como Hytalo Santos. Casos assim podem ser enquadrados como exploração de trabalho infantil na internet.

Atualmente, no estado, existem dois inquéritos em curso para investigar trabalho infantil online, no Ministério Público do Trabalho na Bahia (MPT-5ª Região). O órgão tem, ainda, três denúncias ativas e registro de quatro denúncias arquivadas por falta de elementos, segundo o levantamento feito a pedido do CORREIO. Além disso, já foi instaurado um procedimento preparatório (uma denúncia que entrou em fase preliminar de investigação) e dois Termos de Ajuste de Condutas que já foram firmados.

O MPT atua no tema através da Coordenadoria de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, conduzida pela procuradora Andrea Tannus, e tem um projeto de atuação promocional para o acompanhamento de ações relacionadas a trabalho infantil artístico em plataformas digitais.

No ano passado, o Instituto Alana denunciou 11 casos de influenciadores mirins que estavam divulgando ‘bets’ para outras crianças em seus perfis em redes sociais. "Você vê crianças inseridas num contexto de informações pensadas para adultos e se envolvendo em atividades prejudiciais para elas", diz o advogado João Francisco Coelho, que faz parte do programa Criança e Consumo do Instituto Alana.

Outro exemplo trazido por Felca em seu vídeo inicial é o crescimento dos chamados ‘coaches mirins’ - crianças que incentivam outras crianças a largar os estudos e a parar de brincar porque elas deveriam estar usando esse tempo para ganhar dinheiro. "O mercado de apostas faz parcerias com crianças porque sabe como atingir esse público mais jovem", opina o advogado.

O Instituto Alana é uma das entidades que defende a regulação das big techs, como as plataformas digitais, para evitar que conteúdos inadequados cheguem às crianças. "A gente percebe que vídeos de crianças estão chegando a predadores e adultos mal-intencionados porque existe um algoritmo das plataformas que está impulsionando os conteúdos e fazendo com que chegue até eles", completa.