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Moyses Suzart
Publicado em 10 de maio de 2025 às 05:00
Caminhando na ponta dos pés, como quem pisa nos corações, a devoção da caminhada se confunde com uma procissão sacra, mas no lugar de auréolas, mantas e cruzes, devotos misturam samba, poesia e cachaça pedindo proteção ao malandro que se tornou uma entidade protetora dos becos boêmios, da malandragem, dos menos favorecidos, das meretrizes e de todos os pastores da noite etílica: Salve, Zé Pilintra! >
Vestindo terno branco, gravata grená, sapatos bicolores e chapéu panamá com fita vermelha, este guia espiritual vem ganhando as ruas de Salvador, tem caminhada que reúne mais de mil pessoas, está cada vez mais presente nas casas de umbanda e já conquistou seu próprio santuário, na rua Corpo Santo, no Comércio. No seu altar, bem pertinho do Mercado Modelo, está sua imagem de bom malandro e protetor das ruas, flores ao redor e muita, muita cachaça. >
“Zé Pelintra é o padroeiro dos mais abandonados, um ser de luz que tem na sua missão, dada pelo Criador, ajudar e cuidar dos menos favorecidos, daquele povo que falta tudo, da capoeira, da cultura do bom malandro, das Marias Navalhas. Ele chega pra preencher espaço com sua magia, toda a sua energia. É um ícone do povo brasileiro, pois ele representa a mistura da ancestralidade africana e indígena”, disse Pai Wellington, do Terreiro Ilê Baba Ala Piti Oke, localizado no bairro de Fazenda Grande do Retiro. Ele é o idealizador da Caminhada de Zé Pilintra, que chegou na sua terceira edição este ano. >
A história de Zé Pilintra se mistura no imaginário popular, pois sua trajetória se construiu por meio da oratória. Mas ninguém duvida que ele é a cara da cultura popular. Sua origem é do Catimbó, prática religiosa sincrética do Nordeste brasileiro que mistura a cultura indígena e africana. Alguns defendem que ele chegou ao Rio de Janeiro no final do século 18, fugindo da seca pernambucana. Inclusive ele teria nascido próximo de Exu, cidade com nome de orixá e que também é cidade natal de Luiz Gonzaga. Outros acreditam que ele nem chegou a sair de Pernambuco, mas que um parente fez a diáspora e começou a invocar Zé no Rio, assumindo a alcunha do parente. >
Há, inclusive, especulações de que Zé Pilintra tenha inspirado o personagem Zé Carioca, criado por Walt Disney na década de 1940. Nada comprovado. >
Nos morros cariocas, Zé (ou seu parente) incorporou a sua vestimenta que virou sinônimo de malandragem, mas também tinha um forte papel no morro: curava com seu conhecimento indígena com as ervas, era mediúnico e defendia os menos favorecidos, sempre com a navalha no bolso e o copo de cerveja na mão. >
Com o passar do tempo, tornou-se uma entidade importante da Umbanda e quase um símbolo carioca até para os não adeptos. “No Rio, as pessoas tatuam Zé Pilintra sem sequer ter pisado num terreiro. Mais que um espírito, ele se tornou a própria cultura da malandragem que também está ganhando força aqui na Bahia”, explica Pai Wellington, que incorpora Zé todas as terças-feiras no seu terreiro. >
Pilintra inclusive tem sua importância social no Comércio de Salvador. Nos dias de atendimento, o Zé incorporado pede um quilo de alimento para os que querem seus conselhos. “Todo alimento que arrecadamos nas terças serve para fazer o sopão que distribuímos lá no altar de Zé, no Corpo Santo, para os moradores de rua. Ele também é padroeiro dos desabrigados”, garantiu o Pai. E, como todo bom padroeiro, também merece uma ‘missa’: “o sopão é regado a samba de roda solidário, aos pés do nosso malandro”, completa. >
Já com santuário, a missão agora é que Zé Pilintra ganhe uma data no calendário de procissões na capital, no último domingo de abril. E não vai demorar para que se torne um evento popular, oficial ou não. No primeiro, em 2023, a Caminhada de Zé Pilintra reuniu pouco mais de 200 pessoas. Já no último dia 27 de abril, na sua terceira edição, foram mais de mil adeptos, que caminharam pelo Centro Histórico, desceram a Ladeira da Montanha até o santuário. E a tendência é ter mais gente em 2026. “Eu tive um sonho de um altar de Zé, todo lindo, no comércio, mas ninguém presente. Faltavam as pessoas. Não falta mais”, lembra Wellington, que fez também o altar, que está lá desde 2022. >
O cortejo teve a presença de diversos povos de religiões de matriz africana, como candomblecistas, umbandistas e quimbandistas, adeptos e curiosos, todos vestidos à caráter, ao som de bandas de samba. Terreiros de todo estado também tiveram seus representantes e pretendem fazer suas respectivas caminhadas nas cidades do interior. >
Filho de santo e afilhado de Zé Pilintra, o criador de conteúdo Aleh Duartte garante que o malandro salvou sua vida nos tempos em que saiu da cidade baiana de Araci, aos 16 anos, para trabalhar em São Paulo. “Eu trabalhava em um lugar com muita droga e prostituição e não via mais para onde ir. Foi aí que ele apareceu para mim e disse que me tiraria de lá. E me tirou. Salvou minha vida”, disse Aleh, que voltou para Bahia e realizou o sonho de participar da caminhada do seu santo. >
“Seu Zé é colhedor, aconselha, abraça, enxuga suas lágrimas, aponta e conserta seus erros, quer o nosso bem, nunca o mal. Tudo é alegria, dança, samba. nunca quer ver o filho ou o devoto triste. Este é nosso malandro”, completa Aleh. >
A imagem mais comum de Zé Pilintra é ele com suas vestimentas, encostado em poste de luz, um copo de bebida na mão e um olhar que parece observar seus pastores boêmios se divertirem. Sua imagem é vendida até no Mundo Verde ou nas lojas da Feira de São Joaquim. >
Para seus adeptos, Zé é um símbolo de fé, elegância e resistência. É comum oferecer a ele comidas típicas nordestinas, como farofa, linguiça frita, abóbora com carne seca, queijo coalho, além de bebidas como cerveja clara bem gelada. Cada bar é seu santuário. Cada golada etílica é uma devoção empírica ao espírito da farra. E entre deusas e bofetões, como diria Chico Buarque, o malandro é o barão da ralé!>
Imagens cedidas pelo fotógrafo Igor Brandão>