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Queda de avião bimotor em fazenda do povoado completa dez anos, mas população ainda sente o medo da época
Saulo Miguez
Publicado em 19 de março de 2017 às 07:30
- Atualizado há um ano
Aeronáutica, policia e Nordeste Segurança fizeram perícia em avião: quatro morreram (Foto: Antônio Saturnino/Arquivo CORREIO) A estrada mal pavimentada e a típica paisagem de interior revelam o clima bucólico de um pequeno distrito às margens da BA-512. O povoado de Maracangalha, que integra o município de São Sebastião do Passé, parece um lugarejo onde quase nada acontece.
Mas, no dia 14 de março de 2007, um avião bimotor carregado com R$ 5,56 milhões caiu na Fazenda Nossa Senhora de Lourdes, matando quatro pessoas. Dez anos depois, uma verdadeira novela que começou como uma comédia pastelão e se transformou em filme de terror ainda provoca medo na população.
“O que mais teve por aqui foi ladrão. Eles chegavam em motos, se apresentavam como policiais e invadiam as casas das pessoas, faziam batidas, agrediam. Foram tempos de muito medo, mesmo”. O relato é de quem viveu a situação de perto. A dona de casa Ângela Portela dos Santos, 33 anos, nasceu em Maracangalha e relembra que aquele foi, sem dúvida, o período mais nebuloso do povoado.
A notícia de que havia uma fortuna a solta na região, tal qual os tesouros perdidos nos mares, despertou o interesse de piratas modernos que, equipados com armas, capuz, e muita cobiça, espalharam o pânico na área.Antes e depois da chuva Segundo dona Ângela, de tão significativo que foi o acidente, a história de Maracangalha está marcada entre antes e depois da “chuva de dinheiro”. “Sempre que alguém de fora passa por aqui e puxa uma conversa, pergunta: aqui que caiu aquele avião cheio de dinheiro? Foi um marco nas nossas vidas”, lembra.
Apesar do receio do passado se manifestar nas expressões e palavras da moradora, ela é uma das poucas que se dispõem a falar sobre o acontecido. A maioria absoluta da população foge do assunto como o diabo da cruz. Dez anos não foram suficientes para riscar da memória o pavor.
“Eu não sei de nada porque eu não estava aqui”, diz, agora, um senhor que se distraía no dominó. “Daquele tempo pra cá já mudou quase todo mundo. Eu mesmo vim morar aqui depois dessa história aí”, esquiva-se outro.
O trabalhador rural Ademar, que morou praticamente toda a vida na região, é bruscamente interrompido pela esposa enquanto descrevia o que sabe sobre o caso. “Diga a eles que você não viu nada”, decreta a senhora. Ele retoma o relato e é novamente interrompido. “Você não deixou nada no fogo, não?!”. Dessa vez, seu Ademar silencia. Dos R$ 5,56 milhões que estava no avião, só cerca de R$ 500 mil foram achados (Foto: Antônio Saturnino/Arquivo CORREIO) Vítimas da ganância Mãe de dois adolescentes, que na época da queda do bimotor tinham dois e três anos, dona Ângela conta que muitos conterrâneos, que sequer viram a cor do dinheiro, pagaram um alto preço por morarem próximo ao local do acidente.
“Na verdade, quem mora aqui mesmo não pegou nada. Ouvi algumas histórias de pessoas que encontraram muito dinheiro e mudaram de vida, mas ninguém daqui. O que ficou para nós foi o medo, principalmente por conta das nossas crianças que mal podiam sair na rua”, relatou.
Ela lembra que na usina de açúcar abandonada Cinco Rios ocorreu uma caça ao tesouro: “O povo vivia revirando o mato e puxando os entulhos ali da usina na esperança de encontrar o dinheiro”.
Além dos relatos de torturas e ameaças, a sede pela grana fez uma vítima fatal. O trabalhador rural Joilson de Jesus dos Santos, 26, foi assassinado por três homens em um bar. Após atirarem na cabeça e costas do lavrador, os suspeitos abandonaram a cena do crime, deixando uma família enlutada e aumentando o pânico na cidade.
Conhecidos de Joilson relembram que ele foi traído pela própria vaidade. “O mal foi que ele pegou uma quantidade de dinheiro do avião e logo após foi no centro da cidade ficar se amostrando. Queria comprar tudo. Daí começaram a segui-lo e fizeram a emboscada”, conta um vendedor de picolé de prenome José.
O investigador da Polícia Civil Márcio Xavier disse que até hoje os responsáveis pela morte do lavrador não foram identificados. Na semana que antecedeu o aniversário de dez anos do acidente, uma diligência foi feita em busca de novos indícios.
“Fomos na antiga casa dele, que está abandonada, procuramos parentes que pudessem dar alguma informação, mas todos foram embora de Maracangalha. Não ficou ninguém”, conta. Nos meses que sucederam o acidente um forte esquema de segurança foi montado no povoado para impedir que a população fosse atacada: “Chegou um ponto que só era permitido moradores entrarem no distrito”.Cadê o dinheiro? Bem humorado, um agricultor que se identifica como Marabá, 57, e que vive no distrito desde a adolescência, lamenta não ter estado em Maracangalha na época da queda do avião. “Justo naquela época, eu, que nunca saio, viajei. Se eu estivesse aqui, iria lá no avião pegar dinheiro também”, diz às gargalhadas.
Ele, no entanto, também se esquiva do assunto quando é questionado sobre um possível paradeiro das cédulas. “Isso aí eu não sei não. Não conheço ninguém que tenha ficado com esse dinheiro”.
Segundo informações da Polícia Civil, cerca de R$ 500 mil dos mais de R$ 5 milhões foram recuperados. O restante da bolada evaporou-se como gotas de água no deserto e ninguém ousa apontar quem se apossou do montante.
Apesar do paradeiro incerto, um grupo do Movimento dos Sem Terra (MST), que ocupava uma área vizinha à fazenda, é apontado como suspeito de ter se apropriado da maior parte do dinheiro.
“Quando o avião caiu, eles estavam mais próximos, daí eles foram ver, por curiosidade, e encontraram os pacotes. Então eles pegaram o que podiam, subiram nos caminhões e abandonaram o local. Até desistiram de invadir a fazenda”, relata o investigador Márcio Xavier.
Em nota, a direção do Movimento afirmou que "desconhece que possa existir conversas que aeronave foi saqueada por Sem Terra. Sabemos apenas que o acidente aconteceu próximo a uma área de Acampamento, mas podemos aprofundar o caso e procurar informações diretamente com as famílias".
O violeiro e operador de máquinas Aurino de Jesus, 68, que no dia do acidente estava trabalhando em uma propriedade próxima ao local onde caiu a aeronave, disse que muita gente foi sondar o avião sem saber o que havia dentro.
“Muitas pessoas aqui nunca tinham visto um avião de perto, aí foi todo mundo lá. Quando viram que tinha dinheiro, cada um queria pegar sua parte. Esqueceram até que tinha defunto dentro”, lembra. Morreram o piloto, José Leão Bezerra de Araújo, o co-piloto, Romildo Moraes dos Santos, e os vigilantes da Nordeste Segurança, Genésio Barbosa e Arnaldo Dantas Ferreira. Fazenda foi colocada à venda na época e hoje está abandonada (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) O medo e a fazenda abandonada Como ocorrem nos abalos sísmicos, a área mais próxima ao epicentro do tremor é sempre a mais afetada. No caso do acidente com o avião de transporte de valores, o núcleo da questão é a fazenda Nossa Senhora de Lourdes.
A reportagem do CORREIO esteve no local da queda e conversou com os moradores. Aqueles mais assustados são os que estão na circunvizinhança de onde os milhões aportaram de modo forçado. Para muitos, é como se a cena da aeronave da Bata Táxi Aéreo e todo desenrolar desta longa história estivesse passando ali naquele momento. De forma que fechar os olhos, e a boca, é a melhor solução para evitar um final infeliz.
A fazenda Nossa Senhora de Lourdes, aliás, retrata bem o sentimento daquele lugar. Colocada à venda pelo antigo proprietário, por medo do que poderia ocorrer caso ele permanece na propriedade, o espaço hoje encontra-se completamente abandonado.
A pintura do casarão descascada, os pastos secos e tomados por ervas daninhas, o curral incendiado e nenhuma alma viva encontrada para dar qualquer explicação sobre o que se passara foi tudo o que restou da propriedade. No seu silêncio, entretanto, assim como acontece com a comunidade de Maracangalha, a fazenda berra essa turbulenta e obscura história.