Do chocolate ao vinho: amêndoas de cacau são incentivo à inovação de produtos

A praga da vassoura de bruxa fez a produção cair, mas a Bahia continua a maior produtora de cacau do país

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 16 de julho de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Há alguns anos, comer diretamente a amêndoa do cacau, de gosto forte e amargo, era algo quase impensável. Hoje, devido ao aperfeiçoamento da produção, com a seleção criteriosa do produto e adição de outros ingredientes, é possível não só ingerir a amêndoa pura, como também aproveitá-la para produzir vinhos, cachaças, cervejas, geleias e, claro, o próprio chocolate, que ganhou status de especial.

O melhor aproveitamento da amêndoa do cacau para outras finalidades que não somente o chocolate tem sido a grande sacada de produtores do Sul da Bahia, os quais estão em pleno crescimento de mercado, 30 anos depois de terem sido surpreendidos pela praga da vassoura-de-bruxa, em 1989.

A praga fez a produção que era de 400 mil toneladas, na década de 1980, cair para menos de 100 mil toneladas em 1990. Para este ano, a expectativa é que a produção chegue, no máximo, a 125 mil toneladas. A Bahia, mesmo com o problema, ainda é o maior produtor de cacau do país.

Dona da marca de Modaka, que produz amêndoas especiais caramelizadas para consumo direto e nibs de cacau, num sistema puramente orgânico, a empresária Patrícia Viana Lima, 50, é integrante de uma das dezenas de famílias produtoras de cacau que viveram esse período problemático de perda das lavouras e que, hoje, devido à busca por novas formas de se ganhar a vida com o cacau, colhe literalmente os frutos.

Os pais dela, Fernando Botelho Lima, 77 e Áurea Maria Lima, 76, foram um dos pioneiros na criação de produtos feitos a partir da amêndoa, conforme conta a empresária: “Depois de penar para tentar combater a vassoura-de-bruxa, eles começaram a se movimentar para buscar mais renda com o cacau em 2008, com a produção artesanal de chocolate com a seleção das melhores amêndoas”. (Foto: Divulgação) Nova vida na fazenda Engenheira Civil por formação, na época, ela morava em Salvador, e retornou em 2011 para Barro Preto (sul do estado), onde a família tem uma fazenda de cacau de 270 hectares desde 1896. Vendo o potencial dos produtos que estavam sendo feitos pelos pais, se articulou com eles para, no ano seguinte, criarem a própria marca, a Mocaka, Cacau de Origem, cujos produtos hoje são enviados para o Sul e Sudeste do país.

Patrícia prefere não falar em produção de cacau em sua fazenda, “de tão pouca que é em relação à época da vassoura-de-bruxa”, mas garante que o que produz dá para atender à demanda de amêndoas especiais caramelizadas, vendidas em caixas, assim como o nibs de cacau, normalmente associados ao consumo de outros alimentos, como na panificação, ou em cookies.  

Toda a produção da Modaka na fazenda São José é orgânica. A propriedade familiar é certificada pelo IBD, uma certificadora para produtos orgânicos de renome internacional. “Nossa prioridade é a qualidade dos produtos ao invés da quantidade, e temos ganhado mercado com a credibilidade da nossa marca, sobretudo em outros estados”, disse Patrícia.

A fazenda dela é uma das 31 associadas à Cooperativa Cabruca, sediada em Ilhéus, onde será realizado, entre os dias 18 e 21 de julho, a 11ª edição do Chocolat Bahia Festival, que reúne toda a cadeia produtiva do cacau ao chocolate, derivados, aspectos e manifestações culturais e artísticas em torno do produto agrícola. O evento é considerado o maior do setor do cacau e chocolate no Brasil. (Leia mais abaixo)

Selecionados Da Cooperariva Cabruca só participam fazendeiros que possuem o selo do IBD para produtos orgânicos. Juntos, os cooperados produzem, cada um, entre 80 a 100 toneladas de cacau por ano – mais de 60% da produção é exportada para Suíça e Itália, e o restante das amêndoas é usada para a produção de produtos especiais, como chocolates, cachaças, e vinhos, produzido pelo próprio presidente da cooperativa.

O presidente da Cabruca, criada em 2000, é o francês Patrick Rene Labarrere, 60, que também viveu a época da devastação dos pés de cacau por conta da vassoura-de-bruxa. Ele chegou a Ilhéus em 1987, dois anos antes da praga, com a missão de administrar uma empresa agrícola do setor. Após deixar o emprego, conseguiu outro numa empresa de telecomunicações, onde atuou como diretor industrial até um ano atrás, quando resolveu sair para se dedicar somente à agricultura.

A fazenda dele, de 65 hectares e localizada em Una, foi comprada ainda no tempo em que atuava na empresa de telecomunicações, que ele prefere não falar o nome. Na fazenda, Labarrere montou uma agroindústria para fabricação de produtos desidratados, como banana, coco e mamão, e produz ainda baunilha, pimenta, açaí e guaraná, tudo no sistema orgânico. Sua marca de chocolate é a Du Kakau.

“Tocava as duas coisas juntas, o emprego e as atividades da fazenda, até que resolvi só cuidar do cacau e em pouco tempo iniciei a produção de vinho, ainda em 2006. De lá para cá venho aperfeiçoando a produção”, relatou Labarrere, segundo o qual a sua safra anual de cacau tem ficado em cerca de 120 toneladas.

O vinho, destaca o agricultor, é na verdade um apelido da bebida que ele produz. Bem que ele gostaria de poder chamar mesmo de vinho, mas o Ministério da Agricultura só reconhece o vinho feito de uva. Por isso, ele resolveu batizar a sua bebida de “Blanc de cacau”. “Não posso colocar no rótulo que é vinho e sim que é um produto fermentado”, disse. (Foto: Divulgação) Já pegou Independente de poder usar o “vinho” como nome oficial, fato é que na região do sul da Bahia o “vinho” de cacau já tem se espalhado e ido além das fronteiras baianas. A bebida é produzida a partir do mel de cacau, nos moldes do vinho do porto: é fermentado, envelhecido em reservatórios de inox (não pode ser de madeira) e depois filtrado. Atualmente, há cerca de 10 mil litros de mel em envelhecimento.

“A produção de mel de cacau vai quase toda para a Dengo [uma startup de chocolates], fornecemos diretamente para a empresa, e temos alguns clientes no Rio de Janeiro e São Paulo”, afirmou Labarrere, segundo o qual o Blank de cacau é vendido tanto no mercado local como nacional. A garrafa de 500 mls sai a R$ 25. Por ano, ele diz que tem produzido cerca de 5 mil garrafas.

Para agregar mais valor aos produtos da fazenda, o francês está investindo no sistema de produção “biodinâmico”, que vai além do orgânico: “Nesse sistema, resgatamos a agricultura feita há mais de 500 anos, quando se cultivava com base também na força dos astros. Então, fazemos a nossas atividades com base nas fases da lua – a poda, a colheita. Ninguém está inventando nada, somente resgatando o que já era feito há muito tempo, e tem gente que paga mais caro por isso”.

Também na região sul da Bahia, o destilado de cacau virou “cauchaça”, e é produzida pelo engenheiro agrônomo Marcelo Abrantes, 58, desde 2015, quando teve uma seca na Bahia que reduziu a produção de cacau e o fez pensar em alternativas de renda.

“Esbarramos em muitos desafios que a bebida apresentou no início, mas eles foram superados. O fruto que é bom para a produção é o que está no maduro perfeito, sem interferência alguma, é o cacau fino na sua essência”, declarou.

Mineiro que cresceu numa alambique em Poté, na região de Teófilo Otoni, Abrantes está na Bahia desde 2001 e começou a produzir cacau em 2003. Antes da “cauchaça”, ele tentou o “vinho” do cacau, mas logo avançou para a destilação.

Assim como “vinho”, a bebida que ele produz não pode ser chamada oficialmente de cachaça, e sim destilado de frutas – pelas regras do Ministério da Agricultura, cachaça só pode ser a que é destilada de cana-de-açúcar.

Abrantes produz cerca de 5 mil litros de destilado por ano, enviados para as capitais do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Ele tem duas fazendas, de 102,5 e 96 hectares, ambas em Ilhéus, próximo ao Instituto Biofábrica de Cacau.

Aproveitamento E além da cachaça, produz diversos produtos com o cacau, a exemplo de um produto caramelizado chamado “mellato”, que pode ser consumido com açaí e sorvetes, e usado para coberturas ou revestimentos de doces.

Em suas fazendas são produzidas ainda a granola baiana, que leva nibs de cacau caramelizados com rapadura, coco seco queimado e chips de tapioca. Pode ser consumido puro ou com frutas, leite, vitaminas, sobremesas e ainda acompanhado pelo “mellato”.

O portfólio de produtos, todos com a marca Mais do Cacau, tem ainda mel de cacau, amêndoas especiais secas ou caramelizadas, chá de cacau e pick nibs (amêndoas caramelizadas com rapadura) e o nibs premium. Ele só não produz o chocolate.

“Vamos produzir chocolate quando estivemos melhor ainda com esses produtos. Vamos lançar mais três ainda. Nosso lema é aproveitar o máximo da fruta. Normalmente, mais de 60% dela é desperdiçada”, comentou.

Ainda no mundo das bebidas, o cacau tem sido aproveitado para a produção de cerveja artesanal. A iniciativa é do administrador Renato Maltez, 38, cuja família é dona da marca Maltez Chocolates Finos.

A fazenda de cacau da família, batizada de Limoeira, fica em Itacaré – ele faz parte da 5ª geração dentro da mesma propriedade, onde se produz cacau de origem para vendas em barras de 70% e 80% cacau, e doces finos gourmets.

Há dois anos que Maltez resolveu iniciar a produção de cerveja artesanal. Como todo cervejeiro desse ramo, começou fazendo para ele mesmo, e hoje de tanto gostar do sabor e fazer um produto de qualidade, a produção chega geralmente a 100 litros por evento que ele é contratado para fornecer. Ele não engarrafa o produto, faz apenas o chopp.

“Quase todo mês participo de evento na cidade, mas não faço só o chopp de cacau. Esse é um dos mais pedidos, mas procuro variar com outros estilos de cerveja, buscando sabores diferenciados que possam favorecer a uma diversidade de paladares que possam agradar a diversas pessoas”, afirmou.

Para o Chocolat Bahia Festival deste ano, ele está preparando 120 litros: “Ano passado, fiz 100 litros e acabou em 2 dias, muita gente ficou procurando, mas não tinha nem como fazer porque não é um processo que ocorre de um dia para o outro. Exige cuidado, sobretudo para manter a qualidade”.

FestivaL consolida Ilhéus como região produtora de chocolates de origem A aposta nos chocolates de origem foi a grande saída para o setor do cacau se soerguer no sul da Bahia depois do problema com a vassoura-de-bruxa. Agora, em plena expansão, o setor realiza neste semana, a partir de quinta-feira (18),  a 11ª edição do Chocolat Bahia Festival.

Além de firmar o Sul da Bahia como uma das principais regiões produtoras de chocolate de origem do Brasil, o evento promove o turismo e a cultura regional com característica na economia criativa. O público do festival costuma ultrapassar mais de 65 mil pessoas.

“Há 11 anos reunimos consumidores, especialistas e produtores nesse evento, uma grande oportunidade para discutir a industrialização, a verticalização da produção e, consequentemente, a melhoria da qualidade das amêndoas de cacau selecionado e produto final elaborado”, pontua o empresário Marco Lessa, idealizador do festival.

Ao todo, são 120 expositores, sendo 42 deles de marcas de chocolate de origem. O evento conta ainda com palestras, cursos e workshops. Há também uma grande feira com exposição de chocolate, derivados de cacau e produtos da cadeia.

Empresas públicas e privadas estão presentes no evento, que possui uma série de atividades culturais, exposições de arte, turismo em fazendas, espaço educativo para crianças, ateliê do chocolate e shows com artistas regionais e nacionais.

Durante quatro dias, além da venda de chocolates e outros derivados do cacau selecionado, o festival promove experiências sensoriais, exposições históricas e artísticas, cursos de capacitação, debates sobre temas do setor e palestras ministradas por especialistas internacionais.

O visitante cruzará o Túnel Cabruca, simulação cenográfica e sensorial de uma plantação de cacau sob a sombra da Mata Atlântica. Entre os destaques desta edição está a Cozinha Show, com workshops de confeitaria e gastronomia à base de chocolate ministrados por grandes chefs do Brasil. Além disso, o Fórum do Cacau e o Chocoday trazem palestras proferidas por especialistas nos respectivos temas cacau e chocolate.

O Festival agrega espaço de recreação e minicursos de confeitaria para crianças, a Cozinha Kids, e exposição de bolos confeitados e esculturas de chocolate no Ateliê do Chocolate. Os ingressos custam R$ 10 (meia-entrada R$ 5 para estudantes). Os workshops Cozinha Show custam R$ 25 cada, já as palestras Fórum do Cacau ou Chocoday saem por R$ 50. Na compra de qualquer um dos itens da programação, o visitante ganha o ingresso para a feira.

Para garantir a vaga com antecedência, os interessados podem realizar a compra dos bilhetes no site www.chocolatfestival.com. Crianças com até 10 anos de idade não pagam entrada. Todos os resíduos recicláveis produzidos pelo evento serão destinados à reciclagem graças a parcerias com o Grupo de Amigos da Praia (GAP) e a Cooperativa de Catadores Consciência Limpa de Ilhéus (Coolimpa).

O Festival conta com a parceria do Governo da Bahia e apoio financeiro do Fundo de Cultura, assim como da Prefeitura Municipal de Ilhéus, Sebrae, Governo do Pará, Chocolates Harald e Sicredi. O evento também tem apoio institucional da CEPLAC, Instituto Biofábrica, UESC, GAP, entre outras instituições. O Chocolat Bahia é uma realização da MVU Eventos, detentora da marca para o Brasil e exterior.