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Maysa Polcri
Publicado em 1 de outubro de 2025 às 16:19
Uma disputa que envolve áreas de sete bairros e afeta cerca de 150 mil moradores de Vitória da Conquista, no sudoeste baiano, ganhou um novo capítulo. A Igreja Católica tenta provar que é dona de milhares de imóveis distribuídos em regiões centrais da cidade para cobrar taxas dos habitantes. Nesta semana, a Justiça Federal proibiu a transferência dos imóveis para a Igreja, que diz que vai recorrer da decisão. >
Nos últimos meses, a Igreja realizou atos no Ofício de Registro de Imóveis da cidade para restaurar a matrícula de dois imóveis de Vitória da Conquista. Foram apresentados documentos que supostamente comprovam que as áreas onde os imóveis estão foram cedidas à Igreja no passado. O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública contestando a legalidade das manobras. >
Dentro das áreas em disputa estão imóveis do programa Minha Casa Minha Vida, a atual sede do MPF, a área onde funcionava o antigo aeroporto da cidade, além do terreno onde será construída a futura sede da Polícia Federal. O Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública para barrar o avanço da Igreja sobre as propriedades. Na segunda-feira (29), a Justiça Federal acatou o pedido em decisão liminar. >
No documento, ao qual o CORREIO teve acesso, o juiz João Batista de Castro Junior proibiu a Arquidiocese de Vitória da Conquista e o cartório do município de transferirem imóveis em favor da Igreja. Além da perda da propriedade, os atuais proprietários precisariam pagar taxas extras (laudêmio) à Arquidiocese. >
Igreja disputa áreas equivalentes a sete bairros em Vitória da Conquista
No centro da disputa judicial estão as enfiteuses - direito previsto no antigo Código Civil e que foi extinto no Brasil em 2002. A prática permitia ao proprietário a concessão de imóvel para o enfiteuta, que passava a ter direitos como se fosse dono do espaço, mediante ao pagamento de taxas. Entre as tarifas cobradas estão o foro anual (valor pago todos os anos para manter o direito sobre o terreno) e o laudêmio (taxa paga toda vez que o imóvel for vendido ou transferido). >
O que a Igreja tenta fazer em Vitória da Conquista é provar que as áreas em disputa pertencem à Igreja e estão cedidas aos moradores da cidade. A partir disso, os habitantes teriam que pagar as taxas para a entidade. O procurador Roberto Vieira, um dos autores da ação movida pelo MPF, explica que a Igreja tem apresentado documentos antigos para comprovar que é dona das áreas. Porém, o prazo para a regularização das matrículas dos imóveis terminou em 2003. >
"O Código Civil de 2002 proibiu a constituição de novas enfiteuses, e a Igreja tinha até 2003 para atualizar os registros. O prazo foi perdido, não houve o registro das matrículas individuais de imóveis em grandes áreas da cidade e, agora, 20 anos depois, a Igreja realizou atos para restaurar esses imóveis", explica o procurador, que considera a prática ilegal. >
O MPF estima que cerca de 150 mil pessoas poderiam ser afetadas. De acordo com a decisão liminar da Justiça Federal, a tentativa de restabelecer a enfiteuse configura uma desapropriação indireta coletiva ou uma servidão sem fundamento legal. "Todos esses imóveis incluídos nessas áreas passariam a ser propriedade da Arquidiocese, e os atuais proprietários só teriam direito de uso, como se fosse um regime de aluguel", detalha Roberto Vieira. >
O MPF, que tem apoio do Ministério Público da Bahia na ação, avalia que, se fosse autorizada a cobrança, seria o maior ato de desapropriação já realizado pelo Poder Judiciário da Bahia.>
Procurada para se manifestar sobre o processo judicial, a Arquidiocese de Vitória da Conquista reafirmou a legalidade dos atos feitos no cartório do município. A Igreja afirma que exige laudêmio (taxa) apenas de imóveis os quais ela possui "claro direito previamente constituído". A Arquidiocese reforça ainda que emite declarações de não incidência de laudêmio, quando necessárias, para os imóveis que não são sua propriedade. >
"O Departamento Jurídico repudia toda desinformação acerca da decisão judicial e esclarece que a Arquidiocese nunca tentou reaver terrenos de terceiros ou instituir novas enfiteuses", diz a Arquidiocese, em nota. A Igreja afirma que vai recorrer da decisão da Justiça Federal.
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Além da Arquidiocese, Carlos Alberto Resende, titular do 2º Ofício de Registro de Imóveis e Hipoteca de Vitória da Conquista, também é réu no processo. Segundo o procurador Roberto Vieira, o MPF defende que os atos realizados por ele no cartório neste processo não têm base legal. >
Carlos Alberto foi condenado pela Justiça Federal a pagar multa de R$ 50 mil por tentar transferir o caso para o Ministério Público estadual. O juiz João Batista de Castro Junior avaliou que o registrador agiu de má-fé ao tentar esvaziar a jurisdição federal. A reportagem entrou em contato com a defesa do titular do cartório, que não quis se pronunciar sobre o processo em andamento. >
A Prefeitura de Vitória da Conquista, procurada para comentar sobre o caso, disse, em nota, que não tem participação em cobranças de laudêmio, cuja compensação é cobrada diretamente pela Arquidiocese. >
"A Procuradoria-Geral do Município tem acompanhado o processo, mesmo o Município não tendo responsabilidade sobre qualquer cobrança de laudêmio. A Secretaria Municipal de Finanças já orientou o setor de cadastro imobiliário a não efetuar qualquer alteração de titularidade de imóveis para a Arquidiocese de Vitória da Conquista", diz a gestão municipal. >
"O Departamento Jurídico da Arquidiocese de Vitória da Conquista – BA esclarece que a decisão liminar proferida nos autos do processo nº 1018276-30.2024.4.01.3307, determinou, quanto à essa Instituição Religiosa, a proibição de “exigir prova de quitação ou declaração negativa a respeito de laudêmio ou foro de enfiteuse que não esteja gravado na matrícula do imóvel a que o pedido individual faça referência.>
Trata-se de decisão liminar, ou seja, não definitiva. Desse modo, o Departamento Jurídico está tomando todas as medidas legais para que a decisão seja revista. Informa que esse sempre foi o posicionamento da Arquidiocese de Vitória da Conquista – BA: exigir o laudêmio apenas de imóveis que ela tem claro direito previamente constituído. Tanto é que em diversos casos ela emite declaração de não incidência do laudêmio. >
Informa, também, que dois procedimentos conduzidos pelo Poder Judiciário da Bahia confirmaram a LEGALIDADE dos atos da Arquidiocese, especialmente a exigência do laudêmio: a ação declaratória do ano de 1948, com sentença judicial registrada sob o nº 858 do Livro 4-B do 1º Ofício de Registro de Imóveis de Vitória da Conquista e o Pedido de Providências de nº 0000544-07.2025.2.00.0852. >
O Departamento Jurídico repudia toda desinformação acerca da decisão judicial e esclarece que a Arquidiocese nunca tentou reaver terrenos de terceiros ou instituir novas enfiteuses. >
Por fim, a decisão judicial não proíbe a exigência de laudêmio em imóveis da Arquidiocese em que foi legalmente constituída a enfiteuse. A Arquidiocese preza pela segurança jurídica de Vitória da Conquista – BA, continuará seguindo fielmente a lei e está à disposição de todos os órgãos para esclarecimento dos fatos". >