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Thais Borges
Publicado em 20 de março de 2021 às 05:31
- Atualizado há 2 anos
A família do estudante de Medicina José William Oliveira, 26 anos, ainda luta para se recuperar da perda da tia, Jandaíra das Neves de Oliveira, na última segunda-feira (15). Aos 57 anos, ela morreu de covid-19 na UPA de Santo Amaro de Ipitanga antes que pudesse ser regulada para uma vaga de UTI. Confira o relato dele. Jandaíra tinha 57 anos e vivia com a mãe em Lauro de Freitas (Foto: Acervo pessoal) "Minha tia morava em Lauro de Freitas e a gente respeitou a quarentena. Nossa família pode ser tida até como um exemplo. Não tivemos nenhum encontro familiar, nem no fim do ano, nem em momento nenhum. Nós sobrevivemos à primeira onda e parecia que a gente ia conseguir passar por esse período. >
Leia a reportagem principal: 'Não tem vaga': entenda como funciona a fila da regulação para covid-19 na Bahia>
Ela morava com minha avó e a única forma de comunicação dela com o meio externo era recebendo as compras em casa. >
Na quinta-feira, dia 4 de março, ela começou a apresentar uma tosse. Como estou prestes a me formar em Medicina e pego sempre paciente com covid, falei que era covid. Sempre falo para os meus pacientes que quando qualquer um apresenta qualquer coisa atualmente, até conjuntivite, indico que faça o (teste) PCR, porque até conjuntivite a covid faz. Sintoma gripal, trombose, AVC, infarto. Faz tudo que você imaginar. Qualquer coisa tem que me provar que não é covid. Indiquei que ela fizesse no final de semana. >
Ela fez na rede particular e o resultado só veio sair no dia 10. Veio positivo e, naquele momento, ela já se apresentava dentro dos enquadramentos da OMS (Organização Mundial da Saúde) ou até dos protocolos que a gente tem usado aqui em Salvador como um caso leve. Era tosse e mais nada. Aí, a gente teve dificuldade de procurar atendimento médico porque as UPAs, nessa semana do dia 10, já estavam fechadas para casos leves. >
Chegou o final de semana de 13 e 14 de março e ela começou a ficar mais cansada, mas dizia que não estava com falta de ar. A tosse tinha diminuído, mas começou a ficar mais cansada, mais deitada. Quando eu soube disso, fui visitá-la e fiz as coisas que podia. Olhei pressão, açúcar, fiz exame físico nela. Falei: ‘olha, tia, você vai complicar. Precisamos procurar uma unidade de saúde’. Mas continuamos com dificuldade porque, como ela não tinha queixa, ninguém internava. >
Como vai internar alguém sem falta de ar? O normal da saturação (de oxigênio) é acima de 95. Tem pessoas com covid-19 que têm apresentado saturação de 93, 92, mas não fica com falta de ar. Ela estava justamente nessa linha tênue, saturando 93, 94. Quando chegou de domingo para segunda, no caso, na madrugada de segunda-feira (15), ela me ligou já com a voz entrecortada. >
Aí você sabe que é falta de ar. Eu rapidamente liguei para o Samu. Pedi urgência, falei que era uma paciente covid positivo, com dispneia (falta de ar) e que precisava da assistência. Eles me disseram que iam demorar mas nem demoraram. Chegaram lá e pegaram ela. O Samu começou a tentar hospitais de Salvador. Hospitais de campanha, Hospital Espanhol, Sagrada Família, Itaigara Memorial, outras UPAs em Salvador, outras em Lauro. Mas, pela localização, o Samu acabou parando na porta da UPA de Santo Amaro de Ipitanga. Nessa parada lá, eles chegaram lá 2h30 da manhã e a UPA falou que não tinha como aceitar minha tia porque, segundo eles, estava cheio e não tinha jeito. O Samu continuou tentando vaga e a madrugada foi passando, porque o sistema está colapsado. Não tem vaga. Foi quando o oxigênio do Samu acabou. O oxigênio estava sendo tão necessário que até a reserva já tinha acabado. A UPA foi obrigada a ceder oxigênio para a ambulância e, nisso, foram quase obrigados a internar minha tia. Porque qualquer paciente grave, você é obrigado a internar. Não pode negar. Isso já era por volta de 7h30 da manhã de segunda. >
Imagine uma ambulância ficar para cinco horas na porta de uma unidade tentando regular um paciente e não conseguir. Quando ela foi internada, a unidade imediatamente também colocou na tela da regulação. >
Ela foi internada com uso de máscara não-reinalante, que você fica recebendo oxigênio, mas não é invasivo. Você fica acordado, fica de boa. Ela tomou banho lá na unidade, se alimentou, conversou com as pessoas. >
Mas tem no prontuário dela que, na marca das 15h, ela tinha um desconforto respiratório e indicaram a intubação. O prontuário está pessimamente escrito, então não está bem explicado o motivo de intubar. Somente a dispneia não é motivo pra intubar. Nessa ideia de intubar ela, fizeram as drogas da intubação. A primeira droga é sedativa. É para desligar o Sistema Nervoso Central. Tem uma para relaxar os músculos. Depois, passaram o tubo, mas o coração dela parou. Entrou no processo de reanimação e, segundo o prontuário, ficaram 14 minutos tentando reanimar e ela voltou. Mas o coração parou de novo. Ficaram mais 15 minutos e declaram o óbito às 15h30. Nesse dia, quando a gente entregou ela lá, ficamos com aquele sentimento de responsabilidade do familiar. A gente entregou nosso familiar e nos foi dito que a gente recebia boletim às 16h. A partir de 16h, comecei a ligar, ligar, ligar. Alguém anotava meu número e dizia que iam me ligar, mas nada acontecia. Passou 16h, 17h, 18h, 19h, quando comecei a falar com o turno da noite. >
Às 22h30, finalmente recebi a ligação. A assistente social me chamou para conversar. Como sou formando em Medicina, sei que quando falam isso, é porque seu parente morreu. Isso é uma conduta médica, por isso, a assistente social não pode falar. Mas me identifiquei como formando em Medicina e perguntei se ela tinha falecido. Passaram para o médico, que confirmou, mas não sabia explicar porque nem estava naquele plantão. Quem deveria ter explicado era a médica que assinou o atestado de óbito. >
Saí de Salvador bem perdido e foi a Lauro de Freitas pegar a declaração de óbito e conversar com a equipe. Encontrei uma equipe desmotivada e descobri que, naquele mesmo dia, foram cinco mortes naquele mesmo local. É um número muito alto para um gripário pequeno. A unidade é muito improvisada. Os profissionais não estão muito orientados nem mesmo sobre o uso de EPIs (equipamentos de proteção individual). Tinha médico no corredor usando máscara cirúrgica, sendo que deveria usar N95 e ainda faceshield, por ser local de intubação. >
Tem um lema da Medicina que, em resumo, diz que você sempre deve fazer o bem, nunca a maleficência. Os médicos acreditam que você não ter o cuidado em saúde é melhor do que você ter um cuidado ruim. >
Quando você faz um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), tem uma introdução, desenvolvimento, conclusão. Tem um roteiro. Quando você faz um prontuário médico, você também segue um roteiro. Mas é como se o prontuário dela começasse na conclusão e tivesse uma introdução mal feita. Vendo aquela situação, fiquei ainda mais indignado. Mas o que eu podia fazer se já tinha perdido a única coisa valiosa ali? >
Fui com a funerária até a unidade. Os corpos dessa unidade são jogados em uma salinha fechada nos fundos da UPA. Não tem iluminação. Por trás, passa um esgoto e, do lado dessa salinha, é o descanso dos funcionários. E uma unidade tem que ter alguém que é responsável por essa parte de dispensa dos corpos, que é uma pessoa que vai abrir o local. Nessa salinha, não tinha nem porta, nem luz, nem funcionário na sala. Eu tive que mandar uma empresa privada fazer uma coisa que era serviço público. Duas pessoas que não trabalham ali entraram nessa sala para procurar o corpo de minha tia, sendo que todos os corpos ficam em sacos pretos sem marcação. Você tem que ir na sorte abrindo os sacos, trazendo para fora até achar o corpo certo. Quando acharam o certo, estava tudo escuro e já tinha 12 horas do falecimento. O corpo estava em um estado inicial de decomposição. Não é a mesma coisa que o corpo de alguém que morreu há meia hora. Precisava de tempo para reconhecer, mas os funcionários da unidade ficaram gritando: ‘É ou não é?’. >
Quando fui fazer o atestado de óbito no cartório, encontrei as famílias dos outros mortos na unidade. Todos tinham o mesmo relato que eu. Uma familia tinha pedido a cópia do prontuário e eles negaram, sendo que a cópia é seu direito. >
Minha tia foi internada na terça-feira, às 11h30, no cemitério Bosque da Paz. Na quarta-feira, a vigilância epidemiológica de Lauro de Freitas me ligou para confirmar algumas informações da morte. Eu expliquei o caso e eles disseram para procurar a Ouvidoria do município. Mas relatei algumas informações de saúde pública. Não é comum você estar com covid e, de repente, no oitavo ou nono dia, fica dispneica, chega andando de manhã e de tarde morre. É preciso saber: aquilo foi uma variante? É um caso fora da curva? O estado precisa pedir (o sequenciamento). >
O colapso é total. Minha tia tinha 57 anos. Era uma mulher evangélica, não era casada, nem tinha filhos. Ela cuidava de minha avó, que tem 88 anos e respeitava fielmente o isolamento. Quando ela testou positivo, tive que mandar testar minha avó. Ela também testou positivo, mas já tinha tomado a vacina. Tomou a segunda dose da vacina semana passada e está bem, sem sintoma nenhum. >
Acredito que elas se infectaram através das compras, porque ninguém ia lá além de entregar as compras. Eu passei um ano sem ver minha avó. Só fui ver agora por causa disso. Mesmo assim, fui por ser interno de Medicina, sou vacinado e já tive covid. >
Minha tia era uma mulher apaixonada por cozinhar, especialmente sobremesas. Ela era de uma igreja chamada Deus é amor e tinha os laços dela, as amizades, além da família. Ela tinha hipertensão e amava as plantas. Durante a pandemia, a vida dela estava girando em torno disso. Minha maior vontade é falar para os médicos que eles devem preencher o prontuário da forma mais minuciosa possível, com os detalhes e com os fatos que realmente aconteceram. O da minha tia é cheio de falhas. Isso cabe processo e até perda do registro médico. Mas, pelo que eu vi no prontuário, estava errado. Não posso dizer que se minha tia tivesse sido atendida, estaria viva. Não posso afirmar que o que eles fizeram foi errado. Meu pensamento hoje é que eu perdi minha tia, mas de evitar que outras pessoas percam a tia, a mãe, a avó, o marido". >