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Projeto Comprova
Publicado em 6 de setembro de 2019 às 20:44
- Atualizado há 2 anos
Dois artigos virais nas redes sociais exaltam o fato de o filme “O Trampo”, dirigido e estrelado por Carlos Vereza, ter concorrido em agosto ao prêmio de melhor filme estrangeiro no Festival Internacional de Cinema de Madri mesmo “sem dinheiro da Lei Rouanet”.>
Os textos não dizem, no entanto, que, como o filme de Vereza é um longa-metragem de ficção, não poderia ter se candidatado para receber recursos por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet. Esse mecanismo permite apenas o financiamento de longas-metragens que sejam documentários, de acordo com o professor da Universidade Federal do Ceará Marcelo Ikeda, especialista em política pública cinematográfica. O professor ressalta que, mesmo para documentários, a Rouanet não costuma ser utilizada.>
Segundo Ikeda, um longa como “O Trampo” poderia pedir apoio da Lei do Audiovisual — que, de forma similar à Rouanet, funciona por meio de incentivos fiscais (fomento indireto) — ou do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que financia com recursos públicos (fomento direto) os projetos selecionados.>
De acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão que regulamenta essas formas de incentivo público, não há nenhum projeto de nome “O Trampo” em sua base de dados de fomento. O Comprova também consultou o Sistema Ancine Digital (SAD) e não encontrou referências ao filme, a Vereza ou à produtora do longa, Petci Pedron.>
E é verdade que “O Trampo” foi selecionado para a competição mencionada, mas o texto viralizado exagera a importância do festival. O evento faz parte do circuito independente e não figura entre os mais tradicionais da Europa. Enquanto festivais de renome como Cannes, Veneza e Berlim já tiveram mais de 60 edições, o Festival Internacional de Cinema de Madri teve oito edições.>
Esta verificação do Comprova investigou artigos publicados pelos sites Notícia Brasil Online e Jornal da Cidade Online.>
Evidência comprovada, para o Comprova, é quando a evidência do conteúdo é comprovada sem margem de dúvida.>
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde ou que seja divulgado para confundir, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.>
Como verificamos O Comprova consultou a produção do Festival Internacional de Cinema de Madri, a Ancine, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro e a Empresa Distribuidora de Filmes carioca, a RioFilme. Também entramos em contato com o ator Carlos Vereza, com a produtora de “O Trampo”, Petci Pedron, e com Marcelo Ikeda, professor na Universidade Federal do Ceará e especialista em política pública cinematográfica.>
O filme ‘O Trampo’ Dirigido, produzido, escrito e estrelado por Carlos Vereza, o filme “O Trampo” conta a história de dois matadores de aluguel que se encontram em um quarto de hotel após assassinarem uma juíza. A atriz Rosamaria Murtinho vive uma cantora de cabaré na trama.>
Ao Comprova, Vereza afirmou ter financiado a produção usando suas economias, com investimento total de R$ 300 mil. A maioria das cenas do filme foi rodada em estúdio — o diretor contou que a maior parte da história se passa dentro do quarto.>
O Comprova consultou o Sistema Ancine Digital (SAD) e não encontrou referências a Vereza, à produtora Petci Pedron ou ao filme “O Trampo”.>
Por e-mail, a assessoria de imprensa da Ancine confirmou que o filme não faz parte da base de dados de fomento da agência. A RioFilme e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, que incentivam a produção de filmes nos âmbitos municipal e estadual, também informaram não terem patrocinado a produção.>
Crítico das políticas de incentivo fiscal, Vereza disse que não recorrer à Ancine foi uma escolha. “Quando fiz meu filme, tanto a Rouanet quanto a Ancine só estavam privilegiando produções que fossem ligadas à esquerda. Eu sabia que não ia ser beneficiado nisso e preferi fazer com meus próprios recursos”, disse. Vereza não explicou o que seriam produções ligadas à esquerda. Não há levantamentos que indiquem quando um filme está ligado à esquerda ou não, nem comprovação de que Rouanet ou Ancine usassem a “divulgação de ideias de esquerda” como um critério de seleção.>
Vereza citou ainda que as dificuldades de financiamento impediram que o filme entrasse no circuito comercial de exibição. De acordo com ele, a produção ainda será exibida nos festivais de Brasília, Rio de Janeiro, Mar del Plata e Cuba.>
O Festival Internacional de Cinema de Madri O Festival Internacional de Cinema de Madri faz parte de um grupo de eventos chamado Film Fest International, que existe há 15 anos e tem sede no Reino Unido. A mesma companhia também produz eventos em Londres (Reino Unido), Nice (França) e Milão (Itália).>
A capital espanhola sedia muitos outros festivais de cinema, como mostra este documento do governo madrileno. Pelo menos 57 desses eventos têm seleção de filmes internacionais.>
Os festivais de cinema europeus mais tradicionais são os de Cannes (criado em 1946), Veneza (criado em 1932, o mais antigo do mundo) e Berlim (criado em 1951). Eles são certificados pela Federação Internacional de Associações de Produtores de Filmes (FIAPF), organização reguladora de festivais internacionais de cinema. A entidade, criada em 1933, lista 15 festivais com mostra competitiva de todo o mundo. Apenas um fica na Espanha: o de San Sebastián, inaugurado em 1953.>
O cinema brasileiro tem tradição de participar de festivais de cinema estrangeiros. Este ano, a produção pernambucana “Bacurau” ganhou o inédito Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Por ser um longa-metragem de ficção, o filme também não poderia receber recursos via Lei Rouanet. Ele teve fomento público da Ancine, do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), do Governo de Pernambuco e mais. Outros seis filmes nacionais também foram selecionados para o festival francês. Cena de Bacurau, que tem Sônia Braga no elenco (Foto: Victor Jucá) De acordo com a descrição no site, o evento em Madri busca “ajudar cineastas a encontrar distribuição e financiamento para sua próxima produção cinematográfica”. O festival se vende como uma oportunidade de networking na indústria. “Criamos uma rede pequena, mas excepcional, de profissionais do setor que analisarão todos os filmes inscritos e fornecerão conselhos de negócios e comerciais”, afirma a descrição.>
Um dos coordenadores do festival, Rodrigo Rayón, informou por e-mail ao Comprova que a produção recebe “milhares” de inscrições todos os anos. Segundo ele, mais de 300 filmes são exibidos em Madri ao longo de uma semana.>
Rayón afirmou que os filmes participantes são selecionados por um painel de cinco jurados. “Eles tomam as decisões finais após um primeiro filtro interno, levando em consideração a qualidade do roteiro e a produção refletida na tela. Nosso júri também leva em consideração o histórico dos criadores, produtores, diretores e elenco dos filmes”, informou o coordenador.>
“O Trampo” foi exibido em Madri às 13h35 no dia 11 de agosto para cerca de 80 pessoas. O filme de Vereza levou o prêmio de Melhor Trilha Sonora Original e foi indicado nas categorias Melhor Cenografia e Melhor Filme de Linguagem Estrangeira.>
Ao Comprova, Vereza disse considerar que o festival de Madri é um dos mais importantes da Europa, junto com Cannes, Veneza e Berlim. O diretor afirmou que o evento madrilenho teve a participação de “Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Marco Bellocchio”, mas o coordenador da Film Fest International informou que nenhum desses três cineastas fez parte do festival nas oito edições realizadas até aqui.>
Quem é Carlos Vereza Carlos Vereza atuou em várias produções populares da TV Globo, como Selva de Pedra (1972), O Rei do Gado (1996) e Hilda Furacão (1998).>
Ele é um dos poucos atores que declararam voto no presidente Jair Bolsonaro. Em setembro do ano passado, ele visitou o então candidato à Presidência no hospital após ele ter sido esfaqueado durante a campanha eleitoral. Nas redes sociais, ele é bastante vocal em defesa de pautas do governo e da Operação Lava Jato. O ator publicou uma foto com Bolsonaro no Facebook em janeiro deste ano.>
Vereza já teve orientação política bastante diferente. No cinema, o ator é conhecido por ter atuado em “Memórias do Cárcere”, filme de 1984 que adaptou o livro homônimo de Graciliano Ramos sobre o tempo que passou na prisão por ter sido considerado “subversivo” pelo governo. O escritor foi detido em março de 1936 sob suspeita de participar da Aliança Nacional Libertadora, oposição de esquerda ao governo de Getúlio Vargas.>
Vereza foi militante no Partido Comunista Brasileiro por 20 anos. Em depoimento ao núcleo de memória da Rede Globo, o ator conta que foi apresentado ao Centro Popular de Cultura (CPC), organização composta por artistas e intelectuais de esquerda ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE), por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Os dois se conheceram na TV Tupi.>
Como funciona a Lei Rouanet A Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Rouanet, foi sancionada em 1991 pelo presidente Fernando Collor. A legislação estabeleceu três mecanismos para financiamento de produção cultural: o mecenato, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) — estes últimos não implementados.>
Em geral, quando se fala da Lei Rouanet, referem-se à primeira opção, de incentivo fiscal. Nesta modalidade de apoio, um produtor cultural, artista ou instituição submete seu projeto à Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania, que pode autorizar a captação de recursos junto a apoiadores.>
Qualquer pessoa ou empresa pode apoiar um projeto e, em troca, obter desconto no Imposto de Renda (IR). Para pessoas físicas, o abatimento é de até 6%, e para pessoas jurídicas, 4%. No ano passado, o Ministério da Cultura encomendou à Fundação Getúlio Vargas um levantamento sobre o impacto financeiro da Rouanet — o estudo indicou que que cada R$ 1 de renúncia de imposto gera R$ 1,59 de retorno para a economia brasileira.>
Em abril, o governo anunciou mudanças na Lei Rouanet. O valor máximo por projeto foi reduzido em 98%, de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. O ministro da Cidadania, Osmar Terra, anunciou alterações para incentivar produções fora do eixo Rio-São Paulo e para diminuir o valor dos ingressos.>
O setor de musicais foi o mais atingido pelas mudanças, por ter produções e entradas mais caras. Produtores e diretores criticaram as alterações.>
Como financiar um longa de ficção com apoio público federal Para financiar um filme longa-metragem com mecanismos de incentivos fiscais, é possível se valer da Lei do Audiovisual, sancionada em 1993. Para obter apoio, os projetos precisam ser aprovados pela Ancine. Assim como a Rouanet, a legislação permite o abatimento de IR, na cota de 6% para pessoas físicas e 4% para pessoas jurídicas.>
Inicialmente, essa lei era válida até 2003, mas seu prazo foi prorrogado várias vezes e atualmente vale até o fim de 2019. Em maio deste ano, uma audiência pública no Senado discutiu adiar mais uma vez o fim dos incentivos fiscais.>
A Ancine também fornece mecanismos de fomento direto, com investimento de recursos públicos por meio de editais. Obras de longa-metragem de ficção costumam receber aporte do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Trata-se de um mecanismo criado em 2006 em lei sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.>
De acordo com a Ancine, o FSA contempla várias etapas da cadeia produtiva do setor audiovisual — incluindo produção, distribuição e comercialização, exibição, e infra-estrutura de serviços. O dinheiro do fundo também pode ser aplicado de diferentes maneiras — incluindo o investimento (que tem como contrapartida a participação nos resultados comerciais de projetos) e o financiamento (operação de empréstimo a projetos).>
O professor da Universidade Federal do Ceará Marcelo Ikeda explica que a modalidade mais utilizada para produções de obras audiovisuais é a de investimento. “Isso significa que uma parte da renda desses produtos retorna para o fundo. A modalidade de financiamento geralmente é para construção e reforma de salas de cinema”, disse.>
Neste ano, a dotação inicial do fundo era de R$ 724 milhões. A verba para o FSA é composta principalmente da arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), imposto que incide sobre “a veiculação, a produção, o licenciamento e a distribuição de obras cinematográficas” comerciais. Outra fonte de recursos é o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), composto de arrecadação de impostos cobrados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).>
Os produtores de filmes também podem recorrer a formas de fomento estaduais e municipais.>
Em 2016, o Sebrae publicou o “Mapeamento e impacto econômico do setor audiovisual no Brasil”. O estudo apontou que o fomento indireto, como a Lei do Audiovisual, era responsável por 78% dos recursos públicos destinados à indústria no período entre 2009 e 2014. No entanto, o levantamento identificou um rápido crescimento no uso do FSA, passando de R$ 4,5 milhões, em 2009, para R$ 98,1 milhões, em 2014, o que representava 26,8% do investimento de recursos públicos federais. >
A publicação estimou em R$ 20,8 bilhões o valor adicionado pelo setor audiovisual à economia brasileira em 2015, um crescimento de 10% na participação relativa na economia de 2010 a 2014.>
De acordo com um relatório do Sindicato da Indústria Audiovisual de 2017, o setor era responsável pelo emprego direto de quase 95 mil pessoas, além de outros 240,9 mil empregos indiretos.>
Qual a situação atual da Ancine? A Ancine vive um momento difícil: a agência é alvo de críticas constantes do presidente Jair Bolsonaro e teve seu presidente, Christian de Castro Oliveira, afastado por denúncia de vazamento de informações sigilosas.>
Em carta aberta divulgada após sua saída, Oliveira afirmou que uma auditoria interna apontou que “entre 2013 e 2017, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) pode ter sido desfalcado em mais de R$ 350 milhões”. O ex-presidente também citou supostas irregularidades “na captação de mais de R$ 200 milhões para 64 projetos audiovisuais, além de possível evasão fiscal da ordem de R$ 157 milhões”.>
Em agosto, um edital da Ancine foi suspenso após Bolsonaro criticar a seleção de obras com temática LGBT. A situação culminou na saída do secretário especial de Cultura, Henrique Pires. Em entrevistas, ele afirmou ter deixado o cargo por não concordar com o que chamou de “censura” do governo. Esta matéria do CORREIO mostra que, em agosto, cineastas baianos lançaram um manifesto em defesa da Ancine.>
Repercussão nas redes O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.>
O artigo do Jornal da Cidade Online foi publicado em 23 de junho de 2019 e foi compartilhado 116 mil vezes no Twitter e no Facebook. O artigo do Notícia Brasil Online foi publicado sem data, mas obteve 5 mil compartilhamentos desde 1º de setembro. As medições foram feitas no dia 5 de setembro na ferramenta CrowdTangle.>
*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 23 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de combater a desinformação a respeito de políticas públicas. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do jornal Estadão, Folha de S. Paulo e Nexo, e verificada, através do processo de crosscheck, por cinco veículos: Band, CORREIO, Correio do Povo, Jornal do Commercio e Poder 360.>