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Perla Ribeiro
Agência Brasil
Publicado em 30 de outubro de 2025 às 14:52
O debate sobre a venda de medicamentos em supermercados ganhou força no Brasil em setembro. A discussão veio após a aprovação, no Senado Federal, do projeto de lei (PL) 2.158/2023, que autoriza a instalação de farmácias dentro de mercados. A mudança, conforme aprovada pelos senadores, não prevê que os remédios sejam dispostos nas gôndolas com o mesmo acesso de outros produtos, como sugeria texto inicial, inspirado em modelo semelhante ao dos Estados Unidos. Mesmo assim, acendeu alertas sobre os riscos dessa medida, principalmente aqueles ligados à automedicação. >
“A discussão deve ser feita com responsabilidade, considerando não apenas a conveniência, mas principalmente a segurança do paciente, e pautando-se em normas claras, com delimitações específicas sobre permissões, restrições e mecanismos de educação em saúde”, afirma o médico de família e comunidade Wilands Procópio Gomes, do Einstein Hospital Israelita.>
Os supermercados que desejarem vender medicações terão de abrigar farmácias completas e isoladas da estrutura do mercado, com a presença obrigatória de farmacêutico durante todo o funcionamento. O projeto também prevê consultórios onde o atendimento possa ser individual e sigiloso, como já ocorre nos estabelecimentos independentes. >
O modelo físico é parecido com o de farmácias já existentes em hipermercados, com a diferença de que elas passariam para dentro da linha dos caixas. Os pagamentos poderiam ser feitos junto com o das demais compras, mas com embalagens lacradas em casos de medicamentos controlados.>
Inicialmente contrário à mudança, temendo a banalização do consumo de remédios, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) passou a apoiar a proposta na versão aprovada pelo Senado. “O modelo concilia conveniência com preservação da saúde pública, mantendo o controle técnico e a orientação profissional como pilares do uso racional de medicamentos”, avalia Walter Jorge João, presidente do CFF.>
Em audiências públicas sobre o tema, quando a proposta ainda estava em tramitação, tanto o Ministério da Saúde quanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) haviam se posicionado contra a medida. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) se opôs a “qualquer proposta legislativa que disponha sobre a venda de medicamentos em supermercados.” >
Procurados pela Agência Einstein, os órgãos não responderam se as mudanças feitas no texto antes de sua aprovação pelo Senado bastavam para evitar os riscos de banalização da automedicação e de dificuldades para manter a vigilância sobre as substâncias controladas que haviam sido indicadas nas rodadas de negociação.>
Entre os anos de 1994 e 1995, os supermercados brasileiros chegaram a vender remédios, representando até 1,3% do mercado total de venda de analgésicos naquele período. Na época, a medida foi um “jabuti” (uma mudança legislativa incluída dentro do texto de uma proposta com um tema desvinculado a ela) inserido na medida provisória que instituiu o Plano Real. >
Quando a medida econômica virou lei, as disposições sobre locais de vendas de remédios foram excluídas do texto. A decisão de abandonar esses artigos veio após pareceres do CFF, do Conselho Federal de Medicina (CFM) e de outras entidades de saúde alertando os parlamentares de que a medida banalizava o uso de medicações e diminuía as possibilidades de controle sobre substâncias potencialmente danosas.>
Risco de automedicação >
Embora a medida que esteja em discussão atualmente tenha mais controle em termos sanitários, o temor de que a ela facilitaria a automedicação permanece. Isso porque mesmo medicamentos isentos de prescrição, como analgésicos, podem gerar consequências graves se utilizados de forma excessiva ou incorreta.>
“A automedicação, mesmo com medicamentos isentos de prescrição, pode causar reações adversas, intoxicações e mascarar doenças que precisam de diagnóstico. Sem o devido acompanhamento, podem colocar a vida em risco”, alerta o médico do Einstein. Dados do mais recente Boletim Informativo sobre Monitoramento Pós-Mercado divulgado em junho deste ano pela Anvisa revelam que, em 2024, foram notificadas 56,5 mil reações adversas a medicamentos no Brasil, sendo que 40% delas foram graves e 3,2% levaram os usuários a óbito. >
O remédio mais associado a esses eventos foi a dipirona, que é de venda livre. O primeiro relatório sobre o tema, referente a 2021, já apontava que, do total de intoxicações envolvendo produtos sujeitos à vigilância sanitária (91.883), 79,7% haviam sido relacionados a medicamentos (74.123).>
Um levantamento publicado em março deste ano na Research, Society and Development revela que, embora os medicamentos isentos de prescrição tenham sido relacionados a mortes de forma rara, com riscos 50 vezes menores do que medicamentos prescritos, eles não estão livres de riscos, justamente por serem frequentes entre os usuários. >
São comuns, por exemplo, a manutenção de estoques caseiros e a prática de doação de comprimidos entre pessoas conhecidas. Daí porque a presença integral do farmacêutico em ambientes de venda de medicamentos é considera essencial. "O profissional presente permite que cada paciente receba orientação segura sobre o uso dos medicamentos, exigência que, somada à fiscalização ética e sanitária, garante o uso racional e responsável dos remédios”, afirma Walter João.>
A discussão em torno dessa medida deve gerar mais debate, já que a proposta aprovada pelo Senado ainda será debatida no legislativo e, consequentemente, na sociedade como um todo. “Precisamos achar o ponto exato em que os benefícios potenciais de ampliar o acesso e reduzir a desassistência farmacêutica não esbarrem nos riscos concretos da automedicação", reforça o médico do Einstein.>