Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Alô Alô Bahia
Publicado em 9 de agosto de 2025 às 08:00
Há 20 anos, Salvador recebia um novo morador, vindo do outro lado do Atlântico, pertencente a outra cultura, outro idioma e costumes muito contrastantes aos daqui. Na bagagem, ele trazia um título público de investimentos do porto de Salvador, herdado da avó, e uma grande admiração pela obra de Jorge Amado. Foi o bastante para que o francês Bernard Attal escolhesse a capital baiana como sua nova casa. Duas décadas depois, é a ele que a cidade reconhece pela restauração de uma construção emblemática: o Trapiche Barnabé. >
Em 2002, o então economista fez uma revisão de sua vida ao presenciar muito de perto o atentado do 11 de setembro, em Nova York. Até tentou uma volta à França, mas não se readaptou ao território de origem. Com a descoberta da herança e um forte desejo de voltar aos amores antigos que faziam seu mundo ter sentido, o francês mirou na literatura e acertou na cidade que lhe abraçaria de vez: Salvador.>
Aqui, Bernard Attal deixou de lado as formações em Economia e Direito, migrando completamente para as artes e o empreendedorismo na economia criativa. Hoje cineasta, mestre em Literatura e morador do Santo Antônio Além do Carmo, ele logo adquiriu o Trapiche Barnabé com planos muito ambiciosos para o que permitiam a burocracia da época.>
“Todos os dias eu via o Trapiche Barnabé da janela da minha casa. Era uma situação deplorável. As ruínas davam lugar a um estacionamento que era invadido pela vegetação. Então adquiri a edificação com o meu sócio depois de muito tempo e muitas dificuldades”, conta Attal em entrevista ao Alô Alô Bahia.>
Ele lembra ainda que, inicialmente, eles tentaram salvar o trapiche com medidas emergenciais, mas aponta as dificuldades no processo. “Quando você quer salvar um patrimônio histórico, você passa por muitos obstáculos e altos custos. Notre Dame, por exemplo, levou quase 1 bilhão de euros só em doações da iniciativa privada pra ser recuperada”, observa.>
Na inspiração francesa do período que marcou a prosperidade econômica, avanço tecnológico e o florescimento cultural, o Trapiche Barnabé está finalmente pronto para viver a sua própria Belle Époque, na ambição de ser o epicentro cultural e de inovação, principalmente nas artes da capital baiana. >
De estacionamento degradado a complexo cultural e econômico, o prédio adquirido em 2005 por Attal, agora passa a contar com um anexo, o Trapiche Pequeno, que já abriga 15 empresas que trabalham com fotografia, arquitetura, audiovisual, entre outros, e visa o fomento de pequenos empreendedores da economia criativa.>
Após os últimos 10 anos em reforma, o prédio principal passa a ter capacidade para 2,7 mil pessoas em formatos diversos de ocupação do espaço. A estrutura original do século XVIII foi mantida e modernizada com a implementação de cobertura, placas de energia solar e a adequação às necessidades de segurança e acessibilidade, além da reforma de camarins e banheiros. A reforma foi possibilitada integralmente pelo capital privado, com parceiros mineiros e europeus.>
Além de ser um investimento importante para uma área constantemente escanteada da cidade, a recuperação do Trapiche Barnabé é também uma declaração de amor do francês ao povo soteropolitano. “Eu sempre falo que estou aqui por conta do povo. A cidade me ofereceu várias histórias e abordagens para eu também construir a minha. É uma cidade muito rica culturalmente, tem um povo muito criativo e continua sendo uma fonte de inspiração pra mim”, conta o diretor, que é casado com uma baiana do subúrbio e aborda constantemente em seus filmes os temas sociais e raciais da realidade que acompanha aqui.>
Último vestígio da grande época dos trapiches de Salvador, que chegou a ter 50 deles formando o principal porto do Atlântico Sul, o Trapiche Barnabé é um desses prédios que sustentam a duras penas a memória de um passado essencial para se entender a história e a identidade baianas. Esse era o coração econômico da cidade, a porta de entrada do país. >
Mas na Salvador que vê inertemente sua memória pegar fogo – em dois anos, dois grandes incêndios acometeram casarões no Comércio, um na Rua da Suécia em 2024, e outro há menos de um mês, que atingiu três edifícios – os desafios de empreendedores como Attal são ainda maiores.>
“Esse desprezo pela memória e pela herança histórica é um grande desafio. Infelizmente, o brasileiro não respeita a sua memória. O patrimônio arquitetônico dessa cidade é incrível. Temos a conhecida herança barroca, mas temos muitas outras camadas porque Salvador é um dos últimos lugares do Brasil que ainda tem esse patrimônio que outras capitais já perderam”, aponta Bernard.>
O incômodo do cineasta somado ao investimento no local motiva a intenção de abrir os olhos do poder público e da iniciativa privada para o potencial econômico do bairro do Comércio.>
“Eu ficaria muito feliz se o Trapiche se tornasse uma inspiração para revitalizar o Comércio. O Comércio está morrendo. A prefeitura até realocou secretarias e mexeu na Praça Cairu, mas há muito abandono na região. Porém, não dá pra esperar que o poder público resolva tudo. A iniciativa privada precisa agir e assumir a recuperação da cidade. Há possibilidade de moradia, de investimentos diversos nas construções, mas os prédios estão pegando fogo”, observa.>
“O Instituto do Cacau é um prédio do estado e está abandonado há mais de 10 anos. O museu é uma maravilha e foi completamente destruído porque pegou fogo. Há várias casas dos séculos XVII e XVIII que deveriam ser protegidas e reabilitadas, ocupadas de uma forma útil”, completa o cineasta.>
Attal enxerga dois potenciais para a revitalização do Comércio: um distrito de economia criativa – como há em outras capitais pelo mundo, como Buenos Aires – já despertado pelo Trapiche Pequeno, e a consolidação de uma região residencial com potencial turístico.>
“Para um bairro viver, ele precisa de moradores. Hoje, os investimentos imobiliários estão todos no Rio Vermelho, Ondina, Barra… Por que não podem vir pra cá? A cidade nasceu aqui. Cidades portuárias como Lisboa, Barcelona e Marseille fizeram esse investimento e hoje são modelos para o mundo. Por que os projetos que existem não prosperam em Salvador?”, provoca Attal.>
“Todos os turistas que chegam de navio, chegam pelo Comércio, mas não ficam aqui porque não tem o que fazer. O potencial turístico com a história da cidade é fenomenal, mas muito mal aproveitado”, reflete.>
Mas apesar de não descartar, o diretor e empresário ainda não tem planos para recuperar outros espaços no bairro, embora vislumbre movimentos importantes para que o interesse pela região aumente. “Queremos criar uma feira regular para a população frequentar o bairro. Isso existe em São Paulo, Rio, Paris, em cidades italianas… mas pra essa circulação acontecer, precisamos ter equipamentos necessários à população, como padarias, mercados, etc. Isso pode salvar o Comércio”, pondera o francês, que questiona inclusive a possibilidade de um novo circuito de Carnaval no bairro.>