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Publicado em 9 de junho de 2025 às 14:18
Essa semana o Correio publicou o artigo Critérios e despautérios da cultura, de Gil Vicente Tavares, professor da Escola de Teatro da UFBA, diretor e autor teatral nas horas vagas, no qual faz uma crítica, a meu ver, aligeirada e um tanto estrita, a um Edital de fomento lançado pela Fundação Gregório de Mattos, órgão responsável pelas ações diretas da gestão pública de cultura de Salvador. >
Chamou minha atenção a insistência com que repete cinco vezes ao logo de seu texto o mote “originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação” que, a saber, são parte dos critérios de avaliação do citado Edital. Com peso 3, esse conjunto aglutinado de itens, referentes ao “Mérito artístico”, se soma a “Notoriedade do proponente e ficha técnica” (peso 5) e ao “orçamento” (peso 2).>
O que o colega Gil Vicente parece nomear como despautério está na esfera do habitual, diria até previsível, sistema de avaliação presente nos diversos mecanismos públicos e privados existentes no país, como recentemente o Edital do CCBB que, em seu eixo curatorial, preconiza que irá avaliar aspectos como “diálogos, experiências e pluralidade”, dando ênfase a “Projetos que promovam o encantamento, que surpreendam e tragam novas perspectivas em suas linguagens artísticas”, portanto a primazia do novo não é, ironicamente, uma novidade.>
E, de fato, na minha trajetória no teatro baiano, na qual estive de 1990 para cá em todos os lados dessa peleja (como artista, como produtor e como gestor e, nos últimos quinze anos como professor e pesquisador), vi inúmeras vezes a evocação do quanto de original, singular, criativo, expressivo, autêntico e inovador existe em um projeto de um espetáculo, para, através de dosimetrias subjetivas, atribuir pontos e valores a estes critérios. >
Nas diversas comissões julgadoras e bancas que participei nas últimas décadas, há uma questão que precisa ser ressalvada: toda análise é subjetiva, todo julgamento é feito pela interpretação que o avaliador tem dos critérios e como os sobrepõe sobre o projeto artístico avaliado, portanto a parcialidade é inescapável.>
Meu dissenso com o artigo é que ele dá a entender que o edital privilegia o “novo”, quando diz que obras clássicas ou textos consagrados serão depreciados ou mesmo desconsiderados dentro do sistema de critérios adotado. >
Afirmar isso, a partir dos atributos elencados para a análise de mérito artístico, é equivocado e precipitado já que os critérios, em si, não fixam as vanguardas como dimensões a serem evocadas, afinal, original é aquilo que é único e autêntico; singular é o que se distingue dos demais; criativo é o que é diferente do habitual; expressividade é a qualidade de transmitir ideias, emoções e sentimentos através de corpo, dos gestos e da voz; autêntico é aquilo que prima pela veracidade e fidedignidade ao real e inovador é tudo aquilo que traz elementos de novidade até mesmo ao que já existe, portanto, são métricas aplicáveis a qualquer projeto porque são modos de ver. >
Desse modo, a montagem de Um Vânia, adaptação que Gil Vicente fez para o texto consagrado de Tchekhov pode ser considerada como original, expressiva, singular e autêntica. >
Além disso, o Chamadão das Artes Cênicas, nome dado pela FGM ao Edital, afirma logo no primeiro item que se destina tanto a remontagens, de espetáculos que já estiveram em cartaz, quanto a montagens inéditas (e o ineditismo aqui é que ainda não tenha sido feita por aquele proponente), portanto qualquer pessoa pode propor um projeto de um texto clássico ou consagrado e, dentro da sua concepção estética, buscar a originalidade, a expressividade, a criatividade, a autenticidade, etc. >
Por outro lado, o critério com maior peso (5) é “Notoriedade da trajetória artística do proponente e da ficha técnica”, ou seja, o edital privilegia exatamente os saberes acumulados, o percurso criativo e a fortuna estética do(s) proponente(s) e de sua equipe ao longo do tempo, afinal é notório aquele que conquista reputação, perante um grande número de pessoas, resultante do talento e do mérito, aspectos que precisam observados num continuum para que se possa mensurar e atribuir. Com base nessa interpretação, podemos afirmar que a notoriedade da trajetória de Gil Vicente Tavares no teatro baiano é indiscutível.>
Por fim, aproveito para ressalvar, que o citado Edital contém lacunas que poderiam contribuir para uma análise ainda mais criteriosa, aprofundada e abrangente. Sinto falta que o certame trate mais claramente de aspectos como relevância cultural e social (como a montagem vai contribuir para o enriquecimento cultural da população de Salvador? >
Que elementos da dramaturgia a ser encenada promoverão a reflexão e o debate dos temas de interesse da sociedade?), maior detalhamento da pertinência, viabilidade e exequibilidade da proposta (o proponente demonstra com clareza e realismo, através de cronograma, orçamento e plano de trabalho, como a montagem percorrerá o trajeto da concepção à pós produção?) e, por fim, das ações de formação de público e mediação cultural, pois é sabido que, em tempos de economia da atenção, o teatro, em que pese sua artesania, precisa ser convincente e consistente na forma como os espetáculos são apresentados a sociedade para que possam mobilizar o público. Sim, o público, aquele para quem o teatro deve ser feito, pois qualquer espetáculo só tem sentido e função quando, em cima do palco, é apresentado a plateia.>