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Publicado em 30 de abril de 2025 às 19:28
O objetivo era pescar – sonho da garotinha de 10 anos, vividos entre ruas asfaltadas, construções garbosas, telas e teclas. Com esse foco, o grupo de sete amigas rumou para o vale Serra da Mesa, ao norte do estado de Goiás, para um fim de semana prolongado à beira do maior lago artificial do país. >
Arrodeadas por montanhas e morros de variados formatos, dimensões e tons de verde, as águas azuladas e mansas da represa logo foram matizadas pelos raios dourados do sol em trajetória descendente. Nos limites com as terras do sítio, caiaques, lanchas e pequenos barcos, presos a galhos secos e pedras.>
Entre árvores, capim alto e trilhas de areia e pedregulhos, ficavam os chalés, para os quais todas acorreram, tão logo chegaram. Em cada dormitório, camas de tijolos (que serviam também de suporte para malas e roupas); uma diminuta janela, protegida por tela mosquiteira; uma TV de tubo e um ar-condicionado (ou o que restara de um...).>
Nos banheiros, uma pia (sem bancada); um armário de plástico com espelho partido; um chuveiro (sem box, sem cortina, torneira desengonçada); um vaso sanitário (solto); uma lixeira plástica; e um rolo de papel higiênico seguro por um arame amarrado à descarga de parede, acionada por um cordão de cor indefinida...>
Difícil, descrever a fisionomia da menina ante as ambiências, nitidamente estranhas àquelas jovens retinas, de pronto conduzidas aos chamados ranchos – espécies de platôs cimentados, cobertos por telhas de barro cozido e providos de utensílios necessários à preparação de refeições: geladeira, fogão, pia e um quadrado de tijolos requeimados concebido como churrasqueira. >
Enquanto aguardavam a troca da geladeira (que não fechava) e do fogão (com vazamento de gás), postaram-se nas embarcações atracadas, cantando e contando causos, após constatarem a inoperância dos celulares, silenciados graças à instabilidade do sinal de internet. E entre apagões e gritinhos pueris, a primeira noite se foi. >
Logo após o desjejum – compartilhado com galos, galinhas, pintos, perus, cachorros e pardais –, começaram os preparativos para a pescaria. Enquanto as mulheres arrumavam os apetrechos, a menina correu à sede do pesqueiro e retornou com as iscas: piabas vivas, dentro de um saco plástico com água, que ela exibia, mal contendo a excitação.>
Já no barco, uma das mães perguntou se ela gostaria de colocar a piaba no anzol. Maria Luísa franziu a testa e a encarou detidamente. Em seguida, baixou as vistas e balançou a cabeça negativamente, como se houvesse se dado conta, naquele instante, do destino das piabas – ou de sua desvontade de operá-lo.>
Retornaram da jornada sem os peixes para o assado. Os três capturados foram devolvidos às águas, sob a anuência da menina, que fez o caminho de volta um tanto absorta, como que fisgada pelos encantos das trilhas aquáticas, da cachoeira, das araras, dos bandos de pequenas garças brancas...>
Dia seguinte, não fez questão de pescar. Em lugar do caniço, recebeu da outra mãe um “detector de ovos de Páscoa” – um graveto seco que iria tremelicar, quando próximo a algum ovo. Nesse caso, de galinha, que o aparelho de Malu captou em um buraco no meio do mato, sujo do que as duas mulheres explicaram ser fezes da ave-mãe. >
O alvoroço cedeu lugar a ponderações: “Mamãe, e se tiver um pintinho aí dentro?”. Ela garantiu que não, colocou o ovo na contraluz, para provar que só havia nervuras, nenhum filhote em andamento, e... “mamá, mas se a galinha sentir falta do ovo?”. Minimizaram, “são coisas da natureza”; “depois ela põe outro...”, e recolheram o achado à despensa improvisada.>
Tiveram então a ideia de construir um bodoque. Com a habilidade de quem teve infância raiz, a mamãe e a mamá cortaram um galho tipo forquilha, lixaram e, como num passe de mágica, dependurada numa das vigas carcomidas de cupim do telhado do rancho, encontraram uma borracha de câmara de pneu, em espessura e tamanho adequados à finalização do badogue.>
No galho de uma árvore foram colocadas latas vazias de cerveja, para servirem de alvo (“claro que não é pra atirar em passarinho! Relaxe, filha…”). Quando a operação estilingue começou a dar sinais de esgotamento, foi lançada a missão arapuca – armadilha construída com gravetos, para capturar pequenos animais.>
As encarregadas da pesca do dia retornaram, e as atenções se voltaram para a preparação do almoço – não a imaginada peixada, mas carne assada numa pequena churrasqueira de metal, levada como plano “b” pelas aventureiras mais precavidas. E entre risos e sisos, o dia foi se esvaindo, os olhos da menina grudados na armadilha…>
— Vamos, pessoal?>
Ao ouvir o chamado, Malu correu para a mata. >
— Aonde você vai, Maria?>
— Desarmar a arapuca, mamãe, porque algum bichinho pode ficar preso.>
Fecharam a noite na beira do lago — a menina e as mães. Não pescaram peixes, mas repescaram sonhos do “tempo de pardais, de verde nos quintais, tempo em que o medo se chamou jamais”. Na bagagem de volta, a certeza de que a vida pode, sim, ser bela, se observada, ou construída, sob a perspectiva das crianças.>
Suzana Varjão é jornalista e escritora. Autora, entre outros, de “Micropoderes, macroviolências” >