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Aflição que escorre pelas mãos

Comecei a desconiar de que se Oxalá, Jah, Maomé Tupã ou Buda nos guardam, eles não perdem a chance de serem sátiros ao escreverem os roteiros do nosso destino

Publicado em 10 de maio de 2025 às 11:00

Meu primo Billy Buffa disse para mim, certa vez, que não achava bonita a pessoa com diastema - nome dado ao vão que alguns têm entre os dois dentes da frente. Quando virou adulto e sua mandíbula expandiu, a arcada dentária dele tratou de afastar suas canjicas e… ele adquiriu a característica que tanto o repugnava.

Seu pai, meu saudoso tio Paulo, soube deste “castigo dos deuses” e confessou, entre risos, que, quando criança, tinha horror a quem possuía lábios finos. Dizia ter certeza de que era coisa de gente pão-dura. Aí, tio Paulo cresceu e desenvolveu uma verdadeira “boca de estojo”, como ele chamava a sua. A quem não conseguiu imaginar como isso seria, melhor exemplo de economia labial do que a que ostenta o inglorioso ex-juiz prendedor de presidente e assassino contumaz da última flor do Lácio não há.

Ao conhecer mais histórias assim, comecei a desconfiar de que se Oxalá, Jah, Maomé Tupã ou Buda realmente nos guardam, eles não perdem a chance de serem sátiros ao escreverem os roteiros do nosso destino. Com certeza, essa galera gasta uma onda da zorra ao transformar a vida da gente em uma comédia de erros.

Porém, a certeza de que certas eventualidades não poderiam ser obra do acaso eu só tive quando um infortúnio destes aconteceu comigo. O famoso “pagar com a língua” veio com tudo para me ensinar a dura lição que meu tio e primo também foram forçados a aprender.

O caso é que eu sempre tive verdadeira ojeriza ao cumprimentar cidadãs e cidadãos e sentir suas mãos suadas - até que as minhas começaram, devagarinho, a ficar assim. As gotículas chegavam a tão dantesca extensão que apagavam as linhas das minhas mãos, lubrificadas pelo KY fabricado pelo diabo. Chegavam a brilhar!

Foi na adolescência. Eu evitava segurar as mãos das pessoas para eles não descobrirem quem era o dragãozinho que dormia debaixo da minha cama. Minhas mãos molhavam os papéis das provas - chegavam a rasgar em casos críticos - e minha caligrafia ficava comprometida porque eu segurava a caneta como quem agarra uma enguia ensaboada.

Atenta à mudança sutil no meu comportamento, minha mãe logo desvendou o meu incômodo sem precisar me perguntar. Um dia, com a placidez e o decoro com que deixou sobre a minha cama um sutiã do meu tamanho quando eu comecei a precisar de um, ela me revelou que tio Nando, seu irmão, teve o mesmo problema, e que ele realizou uma pequena e estranha missão para manter suas palmas sempre sequinhas.

- Mas ele falava mal da característica física de alguém? - perguntei a minha mãe. Eu reunia meu dossiê sobre a teoria da ironia celestial.

- Só de gordo. - respondeu minha mãe.

- Oxe! - surpreendi-me. Na época, meu tio Nando estava grande que parecia um major.

Aparentemente, ele encontrou a cura para o seu incômodo numa mandinga. Trata-se de uma simpatia sem pé nem cabeça, como a de colocar uma imagem de Santo Antônio no congelador para laçar o par, ou esfaquear uma bananeira a fim de saber a inicial do nome do próximo amor. Era bem mais simples: a pessoa com palmas de riacho precisaria ir até uma igreja que nunca havia visitado e espalmar suas mãos na parede externa dos fundos dela. Assim, a sudorese cessaria.

Um dia, a minha turma de sétima série fez uma excursão a um desses templos católicos onde eu nunca havia pisado, a Igreja da Conceição da Praia e, em um misto de ceticismo, desespero e pensamentos de que não tinha nada a perder, eu aproveitei para realizar aquela operação sem ninguém ver.

Me dei conta, semanas depois, de que minhas mãos pararam de suar como que por decreto, mesmo nos momentos em que eu estava super aflita.

Entretanto, cruel feito um novo rico que ora rejeita a bolacha Maria molhada no café com leite que tanto forrou o seu bucho, quando fiquei de mãos secas novamente eu voltei a ter repulsa a quem me cumprimentava com aqueles nojentos dedos de charco - cheguei a esquecer de que um dia tive patas de anfíbio também. Aí, é claro, a gangue risonha lá de cima veio me punir, de novo: recentemente, notei minhas palmas molhadas em momentos de leve nervosismo.

Certamente por precisar muito do emprego, Larissa, minha manicure, manipula meus dedos molhados e escorregadios sem falar nada. No máximo disse, uma vez: “sua mão sua, hein?” e, desesperada, botou o ar condicionado para ventilar sobre nós com mais força. Comecei a não fazer as unhas com tanta frequência, decidida a não emprestar insalubridade ao serviço de Larissa. Difícil foi quando, grávida de Jonas, minha irmã Júlia só deixou eu tocar a sua barriga uma única vez porque sentiu agonia. Não a culpo: eu também sinto agonia.

Mas minha cidade, por sorte, tem ainda umas trezentas igrejas que eu não conheço. É hora de renovar meus votos com o sagrado mais uma vez e nunca, nunca mais abrir a boca para falar torto do malgrado de alguém.