As vítimas de estupro

O Brasil se comprometeu internacionalmente com a eliminação de todas as formas de discriminação

Publicado em 17 de junho de 2024 às 05:00

Todas as mulheres têm medo de sofrer algum tipo de violência por serem mulheres. Todos os homens que amam alguma mulher têm pavor de que ela sofra alguma violência por ser mulher. Não faltam modos de causar sofrimentos a elas, mas um modo em especial povoa todos os pesadelos: o medo do estupro da violência sexual. Qualquer pessoa minimamente decente sabe que a vítima desse crime precisa de acolhimento e proteção, certo? Errado. Nesse exato momento, há deputados que se dizem religiosos ou que se dizem a favor da segurança defendendo que a vítima de estupro receba uma pena maior que a do estuprador.

A lei prevê situações excepcionais em que um fato trágico é permitido. Por exemplo, normalmente matar alguém é crime, mas em legítima defesa não. Essa excepcionalidade é reconhecida também para a interrupção da gravidez da vítima de estupro. “Não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante” (artigo 128, II do Código Penal). Convenhamos que é extremamente razoável. Exigir de uma mulher estuprada que tenha na gravidez a lembrança contínua da violência que sofreu seria uma nova violência.

Mas, na ânsia de enganar os religiosos e dizendo que combatem o aborto, parlamentares de extrema direita, cuja crueldade não deixa nada a dever à extrema direita alemã do século passado, promovem um ataque direto à mulher estuprada. A proposta que apresentaram é acrescentar na lei o seguinte complemento: “Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo”.

Não há nenhuma margem para dúvida. É uma regra voltada específica e diretamente para determinar a prisão da vítima de estupro. Está lá, expressamente. Pior, querem punir a vítima de estupro com a pena de homicídio, que é muito maior que a da violência sexual.

Imaginem a seguinte situação: Sua filha é estuprada. Do abuso sexual advém uma gravidez. Quando a barriga começa a aparecer, já com quase 22 semanas, ela pede ajuda para interromper a gestação indesejada. Aprovada essa lei, além de ser obrigada a fazer isso em uma clínica clandestina, ela poderia receber uma pena de até 20 anos. O estuprador, por sua vez, teria uma pena de até 12 anos. Já um homem que na mesma data agredisse sua companheira grávida de 24 semanas até ela abortar responderia por lesão corporal gravíssima, com pena de até 8 anos. Os deputados propõem, portanto, que nossas filhas sejam presas por muito, muito tempo, ou sejam obrigadas a ter filhos de estupradores.

Não pensem, porém, que é só um projeto de lei qualquer de algum político maluco e inexpressivo. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o mesmo que criou o orçamento secreto e cujas notícias sempre dizem ter interesse em cargos no ministério da saúde, determinou que o projeto fosse votado em regime de urgência. Em outras palavras, disse que prender mulheres que engravidam após serem violentadas é uma prioridade do parlamento.

O Brasil se comprometeu internacionalmente com a eliminação de todas as formas de discriminação contra mulheres. Mas, ao mesmo tempo, temos deputados que querem privatizar praias e vencer eleições. Enquanto gritam histrionicamente que defendem a moral e os bons costumes, destilam preconceitos, desviam o assunto e ganham votos, mesmo à custa do sangue e da vida das mulheres brasileiras. Que nossas filhas tenham um futuro melhor e que essa onda de insanidade passe logo.

Rafson Ximenes e Mauricio Saporito. Defensores públicos e pais de uma e de duas meninas, respectivamente.