Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 20 de agosto de 2025 às 12:10
Os dias do ano correm tão rápidos como as ondas do mar, nestes tempos. Nesse mundo acelerado é muito fácil esquecer o que foi ontem se o vento não soprar trazendo ecos. Rever os desenhos compostos por Carybé é como ouvir novos velhos sons que aguçam a lembrança. É desfio saber o que queremos lembrar. >
Outubro abriu o ciclo do xaréu. O ciclo que se inicia no décimo e vai até o quarto mês do ano seguinte. Ato que se mantém, se não mais nas praias recônditas da Baia de Todos os Santos, nos desenhos de séries, como os da Pesca do Xaréu, de Carybé. Ato por ato, as mãos se confundem, e são, ao mesmo tempo, as de quem desenha e as de quem ajuda a puxar o cabo que arrasta a rede que traz o peixe para praia, fazendo-se, por vezes, de um dos mestres que coordena a labuta diante dos xaréus. Os tempos fazem migrar os fatos para diversos tipos de desenhos que recontam o trabalho.>
Não é mágica, é figura de linguagem.>
Das seis séries sob guarda do MAB, há conjunto que contem 65 desenhos sobre a pesca do xaréu. Como se trata de séries, os desenhos têm títulos e números que indicam ordens. “Mulher e menino”; “Pegadas”; “Três homens sentados”; “Preparando a rede 1, 2 e 3”, “Rolando a jangada”; “Jangada no mar 1 e 2”, “Puxando a rede 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9”; “Contando os peixes 1, 2 e 3”; Enrolando a rede 1, 2, 3; “Carregando a rede” e “Levando o peixe”. O títulos por si já narram o enredo dos trabalhos de pescar e de desenhar. Títulos omitidos quando os esboços passam a compor os cadernos da Coleção Recôncavo. Entre tais títulos, aqueles que mais impressionam são os dedicados aos mestres. Há um desenho com título “Três homens sentados”, podemos desconfiar que se refiram aos mestres tramando como pegar o peixe. Há outro com nome de “Mestres”. O que demonstra que Carybé tinha fixado seu olhar em um referente. Esse referente o guiava, como a rede imensa conduzia a transformação na praia. Entre esses mestres, um se torna figura fundamental e ganha destaque, o Mestre de Terra. Apesar de ele orientar toda perspectiva, há só três desenhos dedicados para essa figura na série, com os títulos respectivos: Mestre de Terra 1, 2 e 3.>
A ocorrência da Pesca movimenta um conjunto de trabalhadores. Os pescadores, os mestres de terra e de mar e aqueles, que estudam esse ciclo de movimentação dos peixes no período da desova. Entre esses, devia estar por lá Carybé. Seguindo a conta apresentada por Wilson Rocha, na primeira publicação da Coleção Recôncavo, 1951, quando dizia que a puxada da rede compunha-se por grupo de 63 homens: 1 Chefe; 1 Mestre da terra; 1 Mestre de mar; 20 Atadores, 20 homens de mar e 20 homens de terra. Nesse equação, o autor ainda afirma, naquela publicação, que: os pescadores se apresentavam cedo para a labuta. O chefe coordenava o trabalho dos mestres de terra e de mar. Esses coordenavam os 20 trabalhadores de cada uma das posições. Pela praia, a rede é levada por jangadas; depois, é jogada ao mar, os trabalhadores do mar dispõem a imensa rede em localizações estrategicamente pensadas, em seus tantos metros de corda, toneladas e frações de fio grosso e forte, e outra tonelada de chumbo necessária para garantir que a malha tramada se mantenha na posição e retenha os peixes no seu trajeto. Não é trabalho mole. Não é não.>
Circulo vasto, feito com difícil e demorado trabalho, supervisionado pelo mestre de mar. O peixe se aproxima e a rede o embrulha; o resultado é uma coróla imensa, fantástica de peixes que flutuam no oceano pegos pela rede. O que se vê, a partir de então é um duelo de força. Essa massa prateada querendo escapar e os homens que ouvem o apito do mestre do mar tendo que retê-la, contendo a rede e puxando-a para fora do mar. Por conversas em símbolos entre os mestres de mar e o de terra as informações são passadas. Eles entendem assim a quantidade de peixe e o tanto de força será necessário. Assim, a função passa para quem vai supervisionar o trabalho em terra, na areia. Os homens de terra trarão os peixes para fora da água, guiados pelo mestre.>
Ao decifrar o enigma dos assovios poderosos ou os sons longos e breves dos apitos, o mestre de terra avisa ao seu pessoal para começar o trabalho. São cortadas as cordas de junção da rede. Tudo está pronto. O grande círculo de corda ao redor da rede começa a ser puxado. Os sons curtos e longos no ar anunciam a pesada tarefa dos 20 homens de terra. Puxar, puxar, puxar, puxar, puxar, puxar, puxar, puxar e puxar. Essa parte da tarefa da pesca do xaréu é a mais retratada por Carybé. A poesia de firmar o pé em areia que afunda, que demonstra o poder do corpo humano. Força movimento e ritmo, enfim, ato de trabalho árduo. Enquanto puxam a rede, os trabalhadores têm seus movimentos guiados pelo ritmo dos cantos marcados pelo Mestres de Terra. >
É um duelo entre o mar e a terra que os pescadores e os xaréus travam, compondo espetáculo coreografado. É uma poesia em que a letra da composição, a melodia e o ritmo se vinculam ao mar, ao tempo das ondas. Todos os pescadores puxam o cabo comum e levam o peso para adiante, nessa força tarefa, na qual todos cooperam, os desenhos da pesca de xaréu também remontam a beleza das formas que são refeitas por sequências de homens puxando, puxando o fio que arrasta a rede. Os desenhos foram séries entregues ao Secretário de Educação e Saúde do Estado da Bahia, Anísio Teixeira. Foram coleção de dez cadernos, na Coleção Recôncavo, em 1951 e 1955. Depois, reunidos em livro, em 1962, sob o título de As Sete Portas da Bahia. Nele, os cadernos viram capítulos e as séries dos desenhos expressaram a vida se fazendo em pontos de Salvador visitados pelo Mestre Carybé.>
Também um Mestre de Terra, que nos seus desenhos também ajudava a conter os peixes na rede e a puxar o cabo que trazia os peixes para areia. Os desenhos compõem um novo ciclo para um fato da vida, que viram assim, fato artístico e no caso dos originais do MAB, fato artistico-historico. Os desenhos não substituem a vida porque são de densidades sociológicas diferentes, contudo, tais traços fazem ecos dos atos.>
Às vezes, eles deixam lacunas de anos, décadas e séculos e voltam a puxar em tensão que exige reconhecimento da vida que o permitiu acontecer como ocorrências culturais, artísticas. O texto do Wilson e do Carybé trazem informações de um ciclo que relaciona mar, terra, gente e peixe em tensão pela vida. É tudo o que o mestre de Terra da Pesca de Xaréu em desenhos Carybé entende sobre arte: linhas que traçam a vida se fazendo. >
Apesar de adorar o mar, a visão que desenha da pesca do xaréu é a daquele que lida com as forças das águas na areia, aquele que canta para marcar o ritmo pelo qual os homens afundam o pés na areia com força da pisada e respira no ritmo da música de puxada. Toda pesca de xaréu é desenhada na ressaca de sua chegada a Salvador, entre 1950 e 1951, guarda a perspectiva de quem está na areia. A que corresponde a visada do mestre de terra. >
É no desenho de muitos traços que o ato se explicita e se repete hoje novamente em exposições que alegram a cidade.>
Os ecos repetem a música que marca o ritmo do gesto. Voz, corpo, força, braços e vontade se juntam. Na areia, quem comanda é o Mestre de terra. E Carybé desenha no ritmo do canto o trabalho de puxar. E se puxa a rede que traz o peixe, o desenho o demonstra. E, no mesmo ritmo, os pés se fincam na areia; quando a sucção aumenta o peso da rede, todos os puxadores cedem um passo e arqueiam os lombos. Numa retesada só, os músculos parecem querer sair da pele, se confundem com os peixes reluzindo e pouco a pouco a rede desponta na areia com a carga nervosa e prateada de Iemenjá.>
O pescador leva o peixe; o Mestre do Mar, a sapiência de como lidar com o vento; o Mestre de Terra genuíno, o orgulho de ter vencido o mar; Carybé, como Mestre de Terra, também leva o fruto de seu trabalho, os desenhos. Todos, no sol a pino em que homens de mar e homens na terra se juntam para defender mais um dia de vida no sol forte da América do Sul.>
Esses episódios que se repetem estão de volta aos museus de Salvador. No Museu Afro-Brasileiro (MAFRO/UFBA) há replicas desses desenhos na Exposição “Tem Isso e Tem Aquilo nas 7 Portas de Carybé” e no Museu de Arte da Bahia (MAB/IPAC), há outra exibição, CARYBÉ E O POVO DA BAHIA são expostos originais sob guarda desse museu do estado.>
Vivamos os ciclos, só eles são eternos.>
* *Wal Souza é pesquisadora associada ao Mafro/Ufba>