Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 24 de fevereiro de 2024 às 05:00
Todo mundo sabe que Carybé viveu e morreu na Bahia, mas nasceu em outro lugar: em Lanús, subúrbio da capital da Argentina. Deu seu primeiro berro na terra dos “hermanos”, porém nem engatinhava e já andava pelo mundo e dizem as más línguas que o primeiro idioma aprendido foi o italiano. E na medida que vai se transformando no artista que produziu da Coleção Recôncavo, de 1951, a Iconografia dos Deuses Africanos na Bahia, de 1981, adentra à temática afro-brasileiro, se confirma como filho apaixonado e devotado ao mar, à pesca, ao vento nos saveiros, à Baia de Todos os Santos e à Iemanjá. >
Desde do final do ano passado, todos os orixás devem estar em festa, já que em novembro passado a exposição do Mural dos Orixás, na sala permanente do Museu Afro-Brasileiro da UFBA, fez 42 anos e agora no inicio de 2024, o MAFRO completa 50 anos de criação. Parece que foi ontem que o mural encomendado pelo Banco Bahia Investimentos S.A., da Família Mariani, e esculpido em 1968, quando foi exposto na antiga sede do banco, no edifício Fundação Politécnica, no Centro de Salvador. É no Museu Afro-brasileiro (MAFRO/UFBA), instituição criada em 4 de março de 1974, com base no Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e países africanos, visando ao desenvolvimento de pesquisas e estudos voltados para a temática afro-brasileira e inaugurada em 7 de janeiro de 1982, no prédio da primeira Escola de Médica do Brasil, que a peça adquire a formação que têm hoje. A transferência da peça para o MAFRO se deu em 30 de novembro de 1981; e, no ano passado, completou 42 anos, sendo motivo de alegria múltipla.>
Neste ano, o museu completa 50 anos, como não é brincadeira manter qualquer equipamento público inspirado em ideais de igualdade aberto por tanto tempo, quanto mais um com ênfase em arte afrobrasileira é razão de sobra para a alegria. Por isso é mesmo com muita alegria que, no Pelourino, o MAFRO está em festa aberta para todos visitantes. A gente acha que o artista deve estar comemorando o cinquentenário do museu e a permanência de sua obra aberta ao povo, onde quer que esteja. Se estiver no meio do mar, deve estar aprontando um furdunço na barriga de Iemanjá. E onde mais estaria um peixe?>
Carybé era Obá Onã Xocun do terreiro Axé Opô Afonjá, filho de Oxóssi e todos sabem que ele tinha grande preferência por Oxun, sem nunca negar o afeto pela mãe de todos os orixás, Iemanjá. Isso porque ela também é cultuada por quem gosta do mar, da pesca, do trabalho que dá o manejo das redes pelos pescadores.>
Talvez, seja por essa divindade que melhor se possa observar todo o mural, peça tão emblemática no conjunto da obra desse artista plástico que vivia e tinha atelier em Brotas, bairro de Salvador, onde produziu as talhas do mural, como lembra Solange Bernabó, filha do artista. No instagram oficial de Carybé consta que ele era baiano de coração, carioca de criação, brasileiro naturalizado e argentino por nascimento. É uma boa forma de distribuir Carybé pelos lugares que transitou. Ele nasceu em 7 de fevereiro de 1911, em Lanús, Subúrbio de Bueno Aires, como Hector Julio Paride Barnabó; viveu no Rio dos 7 aos 18 anos; fixou-se na Bahia em 1950, a convite de Anísio Teixeira e se naturalizou brasileiro em 1957, durante essas mudanças assumiu os nomes Hector Bernabó, Júlio Bernabó até transformar-se completamente em Carybé.>
É na Bahia que esse artista eclético consolida o seu signo artístico, ao aprofundar temática que investigava, ao mesmo tempo em que diversifica o manejo das técnicas que buscava desenvolver e assume uma expressividade monumental, deixando o legado de inúmeros murais pela cidade, estado, país e, até, fora do Brasil.>
Se considerarmos os trinta anos que Carybé dedicou à investigação do candomblé, e do qual, o principal resultado é o documentário dessa investigação em forma de livro com 128 aquarelas dos ritos, das vestes, dos gestos dos orixás, entendemos a monumentalidade em seu trabalho artístico. O Mural dos Orixás é obra importante no desenvolvimento desse estudo sobre o assunto, composto nas diversas técnicas que Carybé domina, sendo peça por onde o signo artístico do argentino mais baiano se consolida. Jorge Amado, em texto para o catálogo da peça, publicado em 1971, descreve o mural assim:>
“O mural representando os orixás, deuses africanos cultuados até hoje nos candomblés da Bahia, compõe-se de vinte e sete pranchas de madeira de cedro, entalhadas, levando ainda incrustações de ouro, prata, búzios da costa, cobre, latão, vidros e ferro conforme a simbologia do culto.”>
Reconhecendo o jeito de Carybé meio envergonhado de dizer tudo o que sabia, Jorge Amado deixa de informar algumas outras técnicas presentes na obra, como assemblage, policromia e uma técnica derivada da composição de narrativas, usada em objeto plástico: a metáfora especular ou em seu nome mais pretensioso, a mise en abyme. E, olhe, não é que Carybé não conhecesse essa técnica. Antes, essa técnica é vastamente usada por ele, em seus diversos caixotes dispostos em várias de suas telas. Um bom exemplo é a tela denominada “A Morte de Alexandrina”, de 1939, pintada a óleo, de 1 x 1,35 M. Vale a pena dar uma olhada! Há uma enorme quantidade de narrativas vinculadas umas nas outras a ponto de causar vertigem no observador. O que é um dos efeitos dessa técnica. É como se Carybé contasse a história de um peixe que viu Iemanjá dentro do mar. Feliz a divindade ouvia a história de um de seus filhos e ficava radiante de tão contente que ria alegremente, o que balançava todo o seu corpo. Ao se mexer assim, ela balança as ondas do mar, as pessoas na praia e a vida comum. Isso não é interessante? É como se uma história fosse encaixada dentro da outra por engaste. Mesma técnica, que nada mais é do que ensamblar, enxertar, incrustar, inserir. Só que no caso, da mise em abyme, se incluem histórias. Imagine fazer isso em conjunto imenso de madeira? Inserções que ajudam a expressar o que se pretende que seja visto por olha para os painéis que compõem o mural, ao mesmo tempo, em que são resumidos os procedimentos usados no mural por esse filho de Oxóssi. E isso é a cara de Carybé!>
O Mural dos Orixás foi composto entre junho de 1967 e março de 1968 (em 10 meses), executado em 27 painéis em cedro, sendo que 19 medem 3 x 1 m; e, 8 medem 2 x 1 m. Com a ordenação que adquiriu no MAFRO, em 1981, as talhas reinventam uma festa pública, um xirê imaginário, pelo qual, os painéis maiores compõem, nessa lógica, uma grande roda; e, as menores, uma pequena. Esse xirê só pode ser entendido se for analisado como uma festa imaginária, criativamente composta pelo artista. Isso porque algumas das entidades que constam no mural não fariam (não fazem) parte da mesma festa. Nesse aspecto, Carybé simplifica atos litúrgicos para reunir eguns, babalaôs, babaossains em dança com todos os orixás.>
O xirê do Mural do Orixás ocupa as quatro paredes da sala de exposição permanente do Mafro e se inicia com o Baba Abaolá, um Egun da família de Xangô, que, obviamente, em condições reais, não estaria vinculado aos outros orixás em um xirê. A talha de Egun é composta por entalhes de baixo e alto relevos, incrustações e assemblage. As estampas saltam aos olhos, como se víssemos os tecidos voarem! A segunda figura do xirê é Exu, composto exclusivamente por entalhes em alto e baixo relevos. A festa de Exu também é particular e pode acontecer dias ou só algumas horas antes da folia. A terceira figura da eterna festa pública exposta pelo mural é Ogun, figura já individualizada, que baixa em seus filhos, dança e brinca nas festas. Ele está exuberante em peça magnífica com entalhe em baixo-relevo e incrustações de diversos materiais produzidos em metal. Sua figura armada forma posição de guarda. Já a talha de Oxóssi é composta por alto e baixo relevos e com incrustações (búzios do contra-ogun e marfim - presa do javali). Depois da talha de Oxóssi, segue-se a de Omolu com seu filó em que os mariôs fazem ondas, permitindo demonstrar a bela dança do orixá e a variação de técnicas como entalhe em alto e baixo relevos, incrustações e assemblage. Nanã é a sexta peça da sequência; em um passo comum de sua dança, a orixá senhora ajusta o ibiri como se a insígnia fosse um bebê e embala-o, entalhada em baixo e alto relevos, com assemblage e incrustações, essa prancha fecha a primeira parede de exposição. É preciso andar pela sala para ver e sentir melhor o que diz o mural.>
Isso porque quem vai ao museu e se posta no centro da sala percebe o ritmo embalando cada talha e pode caminhar sentindo tal cadência conduzir seus passos. Sigamos nas outras direções.>
A segunda parede se inicia com Iyami Oxoronga, que segue Nanã. As duas mais velhas uma ao lado da outra. É bom lembrar que Carybé sabia que Iyami, pelo menos abertamente, não dança nas festas públicas. Entretanto, ela está absoluta nesse xirê imaginário de Carybé. Fazendo nascer pessoas aves, expressando a importância da pena na configuração de individualidade divina e humana. A divindade em seu ato de fazer nascer seres é composta por assemblage, incrustações e baixo e alto relevos. Logo depois, vem o orixá Ibualama ou Inlé, com suas roupas de couro, seus chicotes com pontas de aço em incrustações de espelhos, correntes de metal e entalhe em alto e baixo relevos. Na sequência, está a talha com a divindade Logun Édé, peça que conta só com entalhes e por eles representa que gosta de se banhar no rio e andar pelas matas, repetindo os atos do pai e da mãe. Depois, vem Ossain. Peça linda, entalhada em alto e baixo relevos e com incrustação, em que a figura que controla o conhecimento das plantas, folhas e ervas se assemelha a uma árvore, a figura foi erguida em única perna, nas costas de bode e de galo que são suas oferendas prediletas. Traz objetos em ambas as mãos. Em uma segura o mão de pilão e em outra o avivi, insígnia com seis hastes de ferro que rodeam uma sétima, na qual pousa um pássaro. Logo depois, vem Iroko, ou Roko, como é chamado no mural de Carybé. Essa divindade se apresenta com entalhes em alto e baixo relevos e incrustações. A peça lembra toda sacralidade das árvores. E, depois, vem Xangô. Essa divindade gira com suas saias, compondo com a ponta do pé um eixo. Essa talha é composta por entalhe de alto e baixo relevos, incrustações e assemblage. A última peça que está afixada nessa parede é Bayani, entalhada com alto e baixo relevos, ela também conta com incrustações de uma coroa bem grande estampada com búzios. Adê de Bayani sobressalta da madeira avançando para os visitantes da exposição até o centro da sala.>
Como algo pode ser tão envolvente? Se chega sem saber de nada e, no meio do dia, se dança com os orixás.>
A terceira parede conta com seis painéis, como os anteriores, de 3 x 1 m. A primeira é Oxumaré esculpida em baixo e alto relevos, com os seus brajás de correntes de búzios incrustados, cruzando o seu corpo, reforçando a imagem de cobra. Divindade que não cessa de cuidar da pureza da terra e do ar em que vivemos, parecendo como arco-íris, no céu, quando tudo está bem. Logo, logo vem Oxun. O corpo da divindade do rio serpenteia como se as águas das cachoeiras se encontrassem com as do rio. A divindade conta com entalhe em baixo e alto relevos, incrustações e policromia. Seu espelho, voltado para trás, lembra que ela sabe os segredos do tempo. A ela segue-se Iansã, a divindade esculpida eu seu passo de dança é a defesa efusiva de que o mural representa uma festa. Alguns dizem que a Iansã do mural lembra Olga de Alaketo que dança, movendo seu passo na direção do centro da sala com os braços agitando o eruexim em uma mão e espada na outra. Sua composição se desenha com entalhe em alto e baixo relevos e incrustações. Ela faz todo visitante segurar a respiração. Logo depois vem Euá, figura diáfana da cosmologia. Transita entre a consideração do que seja neblina e a ilusão do reflexo da lua na lagoa. A figuração de Carybé é composta por entalhe em alto e baixo relevos e incrustações. Ela segura seu okode, uma cabaça adereçada com palha da costa que faz vibrar o mundo. E aí, vem Iemanjá fazer da brincadeira uma verdadeira festa. Essa figura é entalhada considerando sua própria narrativa em técnica de mise en abyme, onde a mulher é peixe, o peixe é ventre e dentro dele estão todos os orixás que olham de lá, da barriga de sua mãe, para ver os visitantes dançarem. É isso que acontece, segundo Jorge Amado. Para ele, Iemanjá faz todo mundo dançar, balançado seu ventre de tanto rir. Além do mise en abyme, Iemanjá é entalhada por altos e baixos relevos, assemblage, incrustações e policromia. O último dessa parede fecha o grande xirê, Oxalufan, aquele que move-se lentamente, criando e estabilizando as transformações iniciadas por Exu e Carybé. O xirê executado pelas peças maiores se cobre com o pano branco, preparado para a divindade que fecha os ciclos. O entalhe da peça conta com alto e baixo relevos e incrustações, mas é a curva da coluna torcida do ancião que chama a atenção de quem visita a sala de exposição permanente do MAFRO. Ele segura seu opaxorô e leque que contam, ambos, histórias, um que trata da divisão dos planos no mundo e outra que resume a criação dos homens.>
Enquanto todo mundo suspira, outras divindades também dançam aos toques dos atabaques e das histórias. É isso, só que o tempo e direções das rodas são diferentes. Parece que o giro nunca acaba. E é porque nunca acaba mesmo.>
A quarta parede é suficiente para sustentar todo o pequeno xirê. Essa segunda festa é composta por pranchas nas seguintes dimensões: 2 x 1 m, em cedro; e, conta com oito painéis. O primeiro é o senhor da terra, Onilé que representa o egbé das casas coletivas e está entalhado em baixo e alto relevos. Essa divindade caminha de leste para oeste, que é o movimento da vida. O segundo painel é Oxaguiã, Oxalá quando moço. Carybé esculpe essa divindade em luta pela paz. Oxaguiã, rei do inhame, traz consigo uma mão de pilão de prata para poder preparar seus pratos prediletos. Essa divindade está esculpida em alto e baixo relevos e traz incrustações. Depois vem Otin que é composto por entalhes em alto e baixo relevos para demonstrar sua capacidade de caçador destemido. Logo vem Obá que, como a pororoca, encontro das águas do rio com as do mar, desfila beleza formidável e é esculpida em alto e baixo relevos e conta também com incrustações. O painel seguinte são os Ibejis que entalhados exclusivamente em alto e baixo relevos apontam para a perspectiva do encaixe que essa divindade cumpre no candomblé, além de demonstrar que cada ser tem o seu doble. E depois dos Ibejis? Depois está Ifá. Sei que há quem confunda Ifá com o sacerdote do oráculo, Orunmilá. Eles não são a mesma coisa. Um é o sistema e o outro o sacerdote, adivinho, aquele que lê os odus. Parece complicado, mas não é. Os odus são os caminhos que todos querem conhecer. Carybé chama a prancha de Ifá, porque ele descreve todos os instrumentos que ajudam a descrever as narrativas do sistema. O painel conta com entalhes de alto e baixo relevos e incrustações. Depois de Ifá, vem Ocô, divindade da agricultura, a talha é esculpida em baixo e alto relevos, tem incrustações que são uma vara de ferro que serve como apoio ao ancião e sua flauta de osso que ajuda a distribuir a fertilidade de tudo, principalmente, das plantas. Como Carybé cruza histórias, conta-se que essa flauta é de fato de osso que foi recolhido na casa de Olga de Alaketo.>
Depois vem Axabô, uma senhora bailarina da família de Xangô que dança em entalhes de alto e baixo relevos, além de incrustações.>
E quando você acha que acabou, vem uma chuva de aplausos. Não pelo que foi contado, mas porque a sala se expandiu e se transformou na barriga de Iemanjá, que se sacode muito ao rir pela felicidade da comemoração. Ora bolas, 42 anos não é pouco tempo. E todo dia fazendo festa?>
E, em 2024, ainda tem mais. O MAFRO e a UFBA preparam eventos para festejar o cinquentenário do museu. Venha girar no meio da sala, mergulhando na obra e participando do xirê imaginário de Carybé, por essa técnica de narrativas encaixadas.>
Se se concordar que é assim que funciona a mise em abyme, se poderá ver visitantes em festa dentro da barriga de Iemanjá, já que essa técnica é uma forma de incluir, na brincadeira, a história de todo mundo.>
*Wal Souza é pesquisadora Associada MAFRO/UFBA, em cooperação técnica entre IFES (UFRJ – UFBA)>