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Publicado em 7 de julho de 2025 às 16:19
Há algumas semanas, o professor e diretor de teatro Gil Vicente Tavares escreveu artigo, aqui neste jornal, tecendo críticas ao edital promovido pela Fundação Gregório de Mattos (Prefeitura). Logo na sequência, Sérgio Sobreira, também professor e produtor, escreveu texto com alguns comentários em defesa da mesma proposta da FGM. Agradeço aos dois pensadores e me junto ao debate, mas sem me deter ao edital criado pela equipe liderada por Fernando Guerreiro. Busco reflexão sobre a relevância dos editais para a cultura, de uma forma geral. Creio que é chegada a hora de sua substituição por um mecanismo mais prático, objetivo e direto. >
Gil Vicente, professor e diretor de teatro, já escreveu, em outras oportunidades, sobre a fragilidade das comissões que são montadas regularmente e seus critérios que mudam a cada novo verão. Resultados pregressos, metas a serem alcançadas, público conquistado, prêmios obtidos, receita atingida…. esses critérios ou não existem ou possuem peso quase irrelevante para as avaliações. Via de regra, as decisões de investimentos à cultura são baseadas em regras subjetivas e em constante mutação. Se há uma determinada pauta no momento, será esse o norte da comissão dos editais. Se há um clamor popular, será esse o ponto a definir novos projetos para a cultura.>
Nesse sentido, creio que o novo edital proposto pela Fundação Gregório de Mattos busca sanar parte dessa questão ao priorizar a trajetória dos artistas envolvidos. >
Atitude acertada pela equipe da FGM, que entende que a carreira de tantos artistas vem sendo desconsiderada com a chegada de uma nova geração que carrega idéias renovadas e busca espaço a todo custo. Um movimento natural e legítimo… até certo ponto, pois não devemos desconsiderar o esforço e talento de tantas pessoas que, muitas vezes, tiraram leite de pedra em décadas passadas onde não existia dinheiro para a cultura.>
É preciso lembrar que na década de 90, por exemplo, praticamente não havia dinheiro para a atividade artística. Não existiam editais. Havia a “política de balcão”, ou seja, o produtor/ artista só tinha dinheiro para projetos caso tivesse padrinhos políticos. Muitos artistas construíram suas carreiras iniciando projetos com zero ou pouco recurso. O quadro se agrava se voltarmos aos anos 50 e 60. São os nossos pioneiros que muito já fizeram e precisam ser considerados.>
A implantação dos editais, no início dos anos 2000, soou como algo democrático e positivo. Foi um passo valoroso, mas que já esgotou suas possibilidades. Precisamos avançar, agora.>
Sérgio Sobreira, em seu artigo, ressalta a necessidade de reforma nas ferramentas de avaliação por parte dos estados e municípios. Sérgio está correto!>
Junto-me a ele e acrescento que os editais não devem figurar como única ferramenta pública para o financiamento público da cultura. Não pode ser, nem mesmo, a mais importante delas.>
Algo que já existe em alguns países, e que precisa ser observado de perto por todos nós, é a implementação de um FLUXO CONTÍNUO de investimentos que leve em consideração a trajetória e os resultados dos artistas e produtores.>
Para que isso aconteça, em primeiro lugar, será necessário estabelecer metas para todas as áreas da cultura, distinguindo fortemente o que se trata de recurso a fundo perdido e uma linha de investimentos retornáveis que precisa existir, de fato. É imprescindível que exista uma real dimensão de mercado para a cultura. A atividade cultural deve se preocupar em gerar receita e renda. É necessário devolver parte do dinheiro investido para que exista autonomia. Para todos nós, é importante que um mercado real seja criado. Fala-se muito em cinema e teatro profissionais, que só existirá com o risco inerente à economia de mercado e audiência que mantenha tais atividades.>
Vou seguir por aqui e dar exemplos ligados ao audiovisual, área da qual eu entendo.>
Quando o estado financia curta-metragens, por exemplo, sabe-se que não existe perspectiva de retorno financeiro pois não há mercado para o formato. Mas, a produção de curtas é extremamente importante não apenas pela obra em si, mas pela constante formação de novos artistas, produtores e demais trabalhadores do cinema. Contudo, não devemos deixar a atividade “solta”, sem metas a serem alcançadas. Quantos curtas vamos realizar nos próximos anos, na Bahia? Quanto dinheiro será investido a fundo perdido? Quais as metas a serem alcançadas?>
Festivais de cinema estão separados em categorias (A, B, C…), que levam em consideração não apenas a qualidade de organização e curadoria, mas o tempo e história que possuem. Quantos festivais nível A pretendemos alcançar nos próximos cinco anos? Quantos nacionais e internacionais?>
Via de regra, não existem tais metas nos editais atuais. Nem para curta, longa, festivais… Vamos avançar ainda na esteira do curta-metragem.>
Vamos supor que um realizador estreante conseguiu dinheiro do estado para financiar um curta e alcançou a meta de ser selecionado para dois festivais nível A, quatro festivais nível B e mais oito nível C, tanto nacionais quanto internacionais. Que o referido curta ganhou prêmios e críticas positivas. Dentro de um fluxo contínuo de investimento, esse realizador já terá garantido um orçamento pré-determinado para um segundo curta-metragem. Portanto, não teríamos um edital propriamente dito, pois os critérios são, em sua maioria, objetivos. O realizador já provou que tem capacidade artística e de produção. Resta confirmar se o novo projeto cabe no valor que para ele será destinado.>
Dando continuidade a sua carreira, esse realizador tem sucesso em seus próximos quatro curtas e estará, automaticamente, credenciado a receber investimento de baixo-orçamento para um longa-metragem. Vamos supor um valor de um milhão e meio de reais. O realizador deverá apresentar o seu projeto para que o estado/ prefeitura possa atestar que o que está sendo proposto se encaixa nesse valor.>
Tratando de um baixo orçamento, ele terá como meta entrar e ganhar reconhecimento em um bom circuito de festivais, mais uma vez. Ainda não vale cobrar retorno financeiro deste realizador/ produtor. Caso as metas sejam alcançadas e até mesmo superadas, esse cineasta estará credenciado a receber um valor maior e, assim, poderá colocar seu próximo filme em um circuito comercial. A partir de agora estamos falando de mercado. As metas devem ser pensadas em termos de geração de emprego, renda e retorno financeiro. Com a possibilidade de realização de lucros, o artista e produtor devem retornar, obrigatoriamente, um percentual do investimento feito.>
Eu dei aqui um exemplo positivo. O que acontece quando um artista/ produtor não consegue alcançar minimamente as metas? Devemos estabelecer um número de tentativas possíveis, mas creio que se não existir retorno em termos de festivais, crítica e público/ renda, o artista deverá deixar de receber dinheiro público e dará chance aos estreantes.>
Resultados positivos e negativos devem ser levados em conta, sempre. Hoje, da forma como está, mesmo sem resultados, artistas e produtores irão concorrer com os que alcançaram números expressivos no mesmo pé de igualdade. Prevalecem, quase sempre, nos editais, as bandeiras do momento, como já dito.>
O que proponho é a efetivação de um sistema que leve em consideração a carreira e os resultados de cada um, superando, assim, as ideias dominantes do momento que não são, necessariamente, sinônimos de sucesso junto a um amplo público. É preciso dar liberdade de pensamento e reconhecer a competência dos realizadores.>
É preciso, também, que exista transparência quanto ao investimento e aos resultados obtidos de qualquer projeto cultural. O estado e prefeitura precisam acompanhar o que é aprovado. Os realizadores e produtores precisam ser cobrados por resultados. Hoje, a cobrança é gigantesca em termos de prestação de contas, mas nunca quanto às metas, pois elas não existem.>
Há, ainda, um novo ingrediente nesse tempero dos editais que precisa ser levado em conta: a Inteligência Artificial. Roteiristas e produtores estão se valendo cada vez mais de aplicativos para encontrar soluções e mesmo para a criação de cenas inteiras de roteiros.>
Se, por um lado, as bandeiras da moda dominam os resultados dos editais, por outro teremos cada vez mais roteiros escritos por aplicativos. Assim, o risco de que pessoas com pouca ou sem nenhuma vocação para o cinema passarão a ganhar editais e prêmios que são muito importantes para alimentar toda uma cadeia produtiva.>
Mais do que nunca, é preciso que o histórico e real capacidade dos artistas sejam considerados para podermos avaliar projetos.>
Um último detalhe importante: não devemos apenas pensar na produção sem levar em conta QUEM vai assistir aos filmes. Existem muitos filmes brasileiros sendo produzidos com uma baixa ocupação das salas de cinema para a nossa cinematografia. É por demais importante pensar, seriamente, na formação de público, pois não há sentido em realizar para poucos ou mesmo para ninguém.>
Eu não descarto a existência de editais pontuais para sanear determinadas faltas identificadas. Mas, necessitamos de um fluxo contínuo que fortaleça o que vem funcionando bem dentro de exigências a serem cumpridas.>
Precisamos valorizar, na cultura, o histórico dos artistas e das produtoras. Devemos sempre promover a renovação com a entrada de estreantes, mas jamais deixar de levar em consideração as metas e objetivos necessários para finalmente construirmos uma indústria cultural sólida. É preciso pensar na produção levando em conta que cada filme possui um lugar e um público a ser alcançado.>
Não é possível que a produção no Brasil receba tanto dinheiro e que os demais setores fiquem a ver navios. Festivais, mostras, cinematecas e pequenas salas de cinema continuam sem uma política nacional.>
Não há escassez de recursos. Existem gestores antenados e comprometidos com a Cultura tanto na gestão federal, como estadual e municipal. >
Existem bons produtores, diretores, distribuidores, exibidores… tudo está posto. O que falta, mesmo, é um sistema eficaz que regule toda a atividade cultural de forma a equilibrar produção com os demais setores. >
É necessário o aprimoramento dos mecanismos de financiamento à cultura.>
Recomendo a leitura do texto de Gabriel Portela.>
Cláudio Marques é exibidor e cineasta>