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André Uzeda
Publicado em 17 de agosto de 2025 às 05:00
Ainda recém-nascidas, Nadir e Juraci precisaram provar a capacidade da hiper-resistência. As duas palavras grafadas com hífen escolhidas para abrir este texto tentam ilustrar a condição médica rara das duas irmãs. Eram gêmeas xifópagas – duas pessoas unidas a um só corpo. >
Nadir e Juraci nasceram em 3 de junho de 1957, curiosamente sob o signo de gêmeos. A mãe era uma feirante, da zona rural de Terra Nova, à época ainda pertencente a Santo Amaro da Purificação. Somente quatro anos após as siamesas virem ao mundo, o distrito conseguiu finalmente se desgrudar, tornando-se autônomo.>
Sem informação suficiente, a mãe ficou assombrada diante do que viu ao dar à luz. Não tinha marido e criava, sozinha, outros quatro filhos. Se optou pelo afastamento, não deixou de investir uma última dose de zelo no ato final da renúncia. >
Procurou o médico da cidade e entregou as meninas, rejeitando largá-las a ermo. Este gesto – ainda que um inapelável abandono – garantiu a sobrevivência de ambas.>
“Elas chegaram em Salvador de ambulância e foram levadas diretamente para a maternidade Climério de Oliveira. Lá, o médico José Adeodato de Souza Filho, diretor da casa, resolveu que elas seriam filhas da maternidade”, conta o médico Antônio Carlos Vieira Lopes, então um jovem estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia.>
A adoção foi além de uma acolhida afetuosa, avançando para os formalismos burocráticos. Em suas certidões de batismo, Nadir e Juraci adicionaram o sobrenome ‘Climério de Oliveira’. Um caso insólito de meninas que não conheciam os pais biológicos e eram oficialmente filhas de uma maternidade pública.>
“José Adeodato era como se fosse o pai delas. E a enfermeira Aurora Leiro era a mãe. As meninas moravam na maternidade e foram educadas lá, por meio de uma professora voluntária que ia dar aulas particulares”, conta Vieira Lopes. >
Hoje uma sumidade na área da obstetrícia, durante os anos como estudante e na residência médica, ele conviveu de perto com as irmãs e segreda detalhes do comportamento delas. “Eram divertidas e gostavam de mim pelo meu jeito hilário, de fazer muitas piadas. Quando ficaram maiorzinhas, passaram a ser muito vaidosas. Gostavam de se arrumar e, na vitrola, suspiravam ouvindo os cantores da Jovem Guarda”, ri, com a lembrança.>
Como de costume entre os gêmeos, cada uma tinha uma personalidade muito distinta. Juraci, posicionada do lado esquerdo do corpo, era mais extrovertida e racional; Nadir, do lado direito, mais tímida e sentimental. Coincidentemente – ou não – as individualidades de cada uma refletiam as áreas potencializadas pelos hemisférios (esquerdo e direito) do cérebro humano.>
Em pouco tempo, as gêmeas se tornaram figuras míticas do centro de Salvador, sobretudo para os moradores dos bairros de Nazaré, Tororó e Saúde – locais cujos destinos eram sempre escolhidos, em comum acordo, pelas irmãs. O cantor Caetano Veloso, então um jovem recém-chegado exatamente de Santo Amaro, já citou em algumas entrevistas o deslumbramento ao avistá-las. >
“Desde pequenas, elas recebiam muitas doações. As pessoas acompanhavam o crescimento delas e se interessavam por saber como estavam. A fama era tanta que os artistas da Jovem Guarda, como Rosemary, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e Wanderléa, chegaram a ir, mais de uma ocasião, na maternidade para visitá-las”, conta Vieria Lopes.>
O drama de um só corpo>
Os cuidados da equipe da Climério de Oliveira com Nadir e Juraci não atenuavam uma dor lacerante. A condição anatômica das irmãs era extremamente rara e, desde cedo, inspirava cuidados extremos. Os gêmeos xifópagos nascem unidos por uma parte do corpo, como cabeça ou tórax. O caso mais célebre são dos irmãos Chang e Eng Bunker, nascidos em 1811 no antigo Sião (atualmente Tailândia) – daí a referência ao nome siameses.>
“Gêmeos siameses é uma nomenclatura informal. Os gêmeos unidos, ou gemelaridade imperfeita, são as maneiras mais formais de denominação. Esse tipo de gestação é raro, com ocorrência de 1,5 a cada 100.000 gravidezes. Decorrem de uma divisão muito tardia do zigoto, depois do 13º dia pós fecundação”, explica a médica obstetra Luana Sarmento, da maternidade Climério de Oliveira.>
Chang e Eng eram unidos ao tórax, mas cada um tinha dois pares de perna. O corpo das gêmeas Nadir e Juraci tinha duas pernas, ao todo. Cada uma das irmãs comandava uma delas. “Elas precisaram aprender a sincronizar o ritmo do passo para caminharem juntas”, conta Vieira Lopes. Elas também compartilhavam outros órgãos, como fígado, intestino, baço e os aparelhos excretor e reprodutor. Tudo isso tornava inviável a separação.>
Nadir tinha o corpo mais horizontalizado e uma série de problemas cardíacos e pulmonares decorrentes da má circulação de sangue e oxigênio. Como viviam em uma maternidade, eram continuamente acompanhadas por uma junta médica. Ainda bebês foram examinadas, sob orientação do médico e psiquiatra cubano Emilio Mira y Lopez, referência em exames psicobiológicos.>
Ou seja, desde muito cedo, Juraci sabia que a irmã tinha um problema cardíaco crônico que a levaria à morte prematura. Com o eventual óbito de Nadir, a irmã sabia que não poderia sobreviver. “Juraci sempre perguntava se era possível separar as duas. Se a medicina já tinha avançado a este ponto. Ela tinha muita vontade de viver… Era nítido isso nela”, narra Vieira Lopes.>
Morte precoce>
Em abril de 1974, às vésperas de completarem 17 anos, Nadir começou a apresentar sérios problemas cárdio-respiratórios, que resultaram em sua morte.>
Em um texto escrito em inglês, publicado na internet, conta-se que, ao saber da partida da irmã, foi oferecida a Juraci a possibilidade de, enfim, tentar a cirurgia de separação – o que ela teria prontamente negado. “Eu quero morrer com Nadir”, teria dito.>
O médico Antônio Carlos Vieira Lopes recorda de uma segunda versão. Mais realista e igualmente bela. “Tiveram que sedar Juraci quando Nadir morreu. Pois, se soubesse da morte da irmã, além de ficar muito triste, ela saberia que seria uma questão de horas para morrer também. Foi o último cuidado dos pais que sempre a amaram muito”.>
As gêmeas foram enterradas em um caixão branco no Cemitério do Campo Santo, em Salvador. Na cidade dos Ibeji e de Cosme e Damião, mesmo com todas as dificuldades, Nadir e Juraci foram obras-primas de uma vida bem-aventurada.>
Esta coluna é dedicada às irmãs Lenina e Elis; Luana e Júlia, todas não-gêmeas, embora grudadas pela vida.>