FURTO NA AVENIDA

‘Gil, desculpe-me’: o ladrão de Ondina que devolveu carro ao saber que era do ídolo

Bandido descobriu que tinha levado possante de Gilberto Gil, desfez erro e deixou bilhete carinhoso em 1988

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  • João Gabriel Galdea

Publicado em 13 de agosto de 2023 às 05:01

Arte com conteúdo de bilhete deixado por ladrão que furtou mas devolveu carro de Gilberto Gil, em 1988
Arte com conteúdo de bilhete deixado por homem que furtou, mas devolveu veículo de Gilberto Gil, em fevereiro de 88 Crédito: Gabriel Cerqueira/Arte CORREIO

Um corpo dentro do isopor no calçadão da Barra incomoda muita gente; a morte de dezenas de pessoas em operações nas favelas da cidade incomoda muito menos. E se assim caminha a humanidade (oh, mundo tão desigual!), aproveito a oportunidade para relembrar um crime que teve Gilberto Gil como vítima, ali do lado, seguindo o circuito do Carnaval.

O tempo rei até tentou apagar da memória e do anedotário baiano (o Google mesmo, mal lembra), mas transformo agora numa novidade vindo dar à praia de Ondina, quando o carro do cantor e compositor foi furtado, na frente de uma casa na atual Avenida Milton Santos. Após levar o possante, o bandido descobriu quem era o proprietário e decidiu devolver. Não sem antes declarar-se fã e consultor de segurança.

“Gil, desculpe-me, não sabia que [o carro] lhe pertencia. Desculpe-me todo o incômodo que causei. Todos seus pertences estão aí, menos sua fita [cassete]. OBS.: Não esqueça mais a chave no porta-luvas”, dizia um bilhete deixado no veículo pelo tiete gatuno no dia 24 de fevereiro de 1988, 24 horas após dar partida no auto, sem ser atrapalhado pela polícia.

A ação ocorreu quando não havia ninguém no veículo. O proprietário tinha estacionado bem em frente à casa de número 31 da Avenida Adhemar de Barros (como a via se chamava na época), onde morava o também cantor e compositor Caetano Veloso.

Gil e sua companheira, a empresária Flora Gil, saíram do imóvel após horas de muita prosa e poesia, e se depararam com a ausência do Caravan Comodoro verde metálico, placa XR-2228 [não entendi por que não 2222]. Era o carro do ano e, naquele 88, Gil se candidataria a vereador por Salvador, e acabou sendo o mais votado nas urnas: 11.111 sufrágios [não entendi por que não 22222].

Gilberto Gil já empossado vereador por Salvador, em abril de 1989
Gilberto Gil já empossado vereador por Salvador, em abril de 1989 Crédito: José Santos Melo/Arquivo CORREIO

Várias queixas 1

Antes de a paz invadir o coração do ladrão, o compositor de 'Andar com fé' não levou fé que reaveria seu pertence, e foi à então Delegacia de Furtos e Veículos registrar queixa. As esperanças de recuperar o carro eram bem pequenas, mas foi preci-necessário seguir o protocolo e dar parte.

Durante todo o dia seguinte, a polícia tentou seguir pistas do mão-leve que tivera a audácia de lesar uma estrela da música mundial, justo numa área nobre da cidade. Nada encontraram.

Mas essa investigação acabou abreviada, afinal, às 2h da madrugada do dia seguinte, enquanto esperava na janela de outro imóvel em Ondina, onde também morava, Gil recebeu um telefonema de Caetano Veloso. Ligação nesse horário? Talvez tenha imaginado que era notícia ruim, mas não. “Gil, seu carro está estacionado em frente aqui de casa, no mesmo lugar que estava quando foi roubado”, informou-lhe Caetano, conforme reproduziram os jornais na época.

Aliviado, Gil comunicou a devolução do automóvel à Polícia e foi até o local verificar o estado do seu Comodoro. Assim como tinha deixado, quase tudo continuava no mesmo lugar, especialmente uma pasta com documentos. Foi ela que indicou ao larápio quem era o dono do carango.

A única coisa que tinha sido levada, como o bilhete indicava, estava horas antes dentro do toca-fitas. No mesmo dia, provavelmente, já rodava na radiola do novo dono. Sobre o simpático bilhetinho, consultei a assessoria de Gil, que garantiu que não existe mais. Que pena.

Várias queixas 2

O caso, claro, repercutiu na imprensa local e nacional, tudo visto com algum bom humor pelas circunstâncias especiais. Mas nesse itinerário de leveza pelo ar, houve quem reclamasse e sugerisse algum tipo de favoritismo ao artista. Relata a companheira Sora Maia, editora de Fotografia deste CORREIO, que uma colega jornalista da época teve o carro roubado, um tempo depois, e escreveu artigo para um periódico local exigindo da Polícia o mesmo desfecho do Caso Gil: a solução. Queixa justa? Não sei nesse caso, mas talvez...

Só sei que lembro que me incomodei, em alguma medida, com a abordagem do caso do corpo encontrado no Porto, semana retrasada: manchetes aqui e acolá que davam a entender que aquilo pode até acontecer em outro lugar (mortes punks das periferias), mas não na Barra.

Embora sem fazer menção ao caso de Gilberto Gil, levei meu incômodo pessoal – sobre essas espécies de “zonas de exclusão” – à doutora em Sociologia e pesquisadora do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rosana Moore. Meu questionamento foi o seguinte: por que a sociedade normaliza o cometimento de crimes graves (assassinatos, por exemplo) em algumas regiões da cidade (as mais pobres) e em outras, como a Barra ou a Ondina, isso tende a não ser tolerado?

De cara, ela comenta que “determinados grupos na sociedade brasileira vivem uma experiência de uma cidadania limitada e limitadora da vida como um todo, de forma que se opera na sociedade uma aceitabilidade das mais variadas formas de violência impostas a determinados corpos de determinados locais”.

Rosana Moore cita ainda o processo de “despersonalização” e “coisificação” de certos grupos de indivíduos, que visam a exclusão do seu “usufruto da cidadania”. “Trata-se de um processo de desumanização que autorizaria indiretamente a infligir a morte violenta aos membros do grupo estigmatizado, seja por distinção de raça, classe social, gênero... A estigmatização e os estereótipos suscitam o medo que justificaria a violência letal, as discriminações, os atentados à dignidade, a desqualificação, o desrespeito e o desprezo do membro do grupo e de toda a comunidade estigmatizada”, continua a pesquisadora.

Apenas entre 28 de julho e 4 de agosto, portanto, num período de oito dias, ações policiais em comunidades de três cidades baianas (Salvador, Camaçari e Itatim), resultaram em 30 mortes. O corpo no Porto da Barra – local tema de "Ele e Eu", canção do Expresso 2222 que fala da calmaria e agitação dele e de Caetano por lá – foi plantado no calçadão por um suposto rival da vítima, já preso, no dia 30.

No estado de violência local, defende Rosana Moore, o aspecto racial ganha protagonismo na tentativa de explicar suas origens. “No Brasil, esse processo de desumanização do negro começou a partir da escravidão africana e continuou após a abolição da escravidão. Esse processo constituiu um elemento chave do imaginário social brasileiro como um todo. A morte social que vai sendo produzida ao longo da vida é uma expulsão para fora da humanidade. Então os corpos dessas pessoas e os territórios que elas habitam, favelas/periferias da cidade quase sempre já significam violência. É o lixo social jogado no lixo produzido pela cidade. E aqui no Brasil sabemos que é mais veemente sobre o corpo negro que se vê desenrolar o espetáculo da mutilação, da aniquilação, da omissão, da negligência e do abandono, seja por parte do Estado ou por omissão de sua ação, fazendo ou deixando morrer.” Toda violência baiana tem um jeito...