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André Uzeda
Publicado em 5 de outubro de 2025 às 08:00
Quando Antônio Conselheiro foi assassinado em Canudos, em 1897, Feira de Santana já havia se emancipado há 64 anos. O líder messiânico nunca chegou a efetivamente colocar os pés naquela que viria a se tornar a segunda maior cidade da Bahia. No entanto, um trecho de uma das profecias mais famosas atribuídas a ele foi, durante anos, perseguida quase como uma obsessão febril pelos feirenses. >
“O sertão vai virar mar…”.>
Em um curto período de tempo em seus 192 anos de história, a ‘Princesa do Sertão’ chegou a viver, de fato, o sonho de ter uma praia dentro de seus limites territoriais. A empreitada durou pouco tempo, mas cumpriu à risca o objetivo de acalmar os ânimos em um período turbulento vivido na cidade.>
A obra foi tocada na década de 1960 em cima da Lagoa de São José das Itapororoca, no distrito de Maria Quitéria – o lugar ganhou esse nome justamente por ter sido o local, em 1792, de nascimento da heroína da Independência do Brasil na Bahia. >
Ironicamente, assim como Maria Quitéria se disfarçou de homem para servir no Batalhão dos Periquitos, divisão militar do Império Brasileiro, a prefeitura camuflou uma lagoa natural para fazê-la se parecer o máximo possível com uma praia.>
Para isso, gastou os tubos para sanear as águas, limpar a área e bancar centenas de dezenas de caminhões para despejar areia branca nos arredores. Ainda plantou cajueiros e coqueiros para compor um paradisíaco cenário litorâneo. Foram construídos também quiosques e espaços para a prática de esportes.>
O projeto, inicialmente, foi um enorme sucesso. Como era bem pertinho do centro da cidade (apenas 13 quilômetros), passou a ser o programa obrigatório de fim de semana dos feirenses naqueles anos. Nessa época, a cidade vivia um boom populacional, solidificando sua vocação comercial e de entreposto rodoviário.>
A praia política>
Quem encampou o projeto da praia de Feira foi o prefeito Joselito Falcão de Amorim, um militar que chegou a integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a II Guerra Mundial, embora não tenha sido enviado para o front na Itália – onde os pracinhas brasileiros combateram.>
Joselito assumiu o Paço Municipal em maio de 1964, quando os militares cassaram o mandato do prefeito eleito Chico Pinto, cuja fama era de ser comunista, embora integrasse o partido de centro PSD.>
Pinto havia sido consagrado nas urnas um ano antes, sob o slogan "Francisco Pinto na prefeitura é o povo governando”. Apesar do pouco tempo de mandato, encampou projetos como o orçamento participativo, a farmácia popular e o método de alfabetização de Paulo Freire.>
Depois que os militares assumiram o poder, derrubando o presidente João Goulart, Pinto ficou mais 38 dias no cargo. Joselito Amorim, então vereador da UDN, foi empossado em seu lugar.>
A praia de Feira de Santana surge exatamente neste contexto político conturbado, atendendo um anseio histórico dos moradores e tentando distensionar as pressões pela derrubada de um político popular democraticamente eleito. >
Fase solar também no futebol>
O prefeito Joselito foi responsável também por, em 1966, reformar completamente o estádio da cidade, dando o nome de Alberto Oliveira – embora, carinhosamente, os moradores até hoje optem por chamá-lo de Joia da Princesa.>
No jogo de estreia, o Fluminense de Feira recebeu a equipe do Vasco da Gama – então campeã do torneio Rio-São Paulo daquele ano, dividindo, por uma falha do regulamento, o troféu com outras três equipes: Santos, Corinthians e Botafogo.>
Apesar da derrota na estreia, o novo estádio impulsionou uma grande fase do Touro do Sertão, culminando com a conquista do bicampeonato baiano de 1969. O time de Merrinho, Ubaldo, Ubirajara e Sapatão já havia papado o primeiro título em 1963.>
Bons ventos pareciam soprar em Feira de Santana naqueles anos. A praia refrescava o fim de semana e o futebol alimentava o orgulho local, ao bater de frente com a dupla Ba-Vi.>
Nenhuma das duas coisas, entretanto, durou muito tempo. O Flu de Feira jamais conseguiu repetir uma nova façanha no torneio estadual. Atualmente, o clube amarga a Segunda Divisão do Baiano.>
Já a praia de Feira viria a minguar nas décadas seguintes, se revelando a lagoa que sempre foi. E, deste modo, cumprindo a outra metade da profecia atribuída a Conselheiro: “O mar vai virar sertão”.>
Esta coluna é dedicada à Manuela Lula que, com muito bom humor, contou a história da praia de Feira no Instagram. E também às jornalistas Ana Paula Lima e Juliana Vital, duas feirenses com muito orgulho.>