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Sexo, massacre, nudez e consciência: a histórica passagem de Zé Celso Martinez por Canudos

Em 2007, quando um dos maiores massacres da história do Brasil completou 110 anos, o Teatro Oficina desembarcou no sertão da Bahia para encenar ‘Os Sertões’

  • Foto do(a) author(a) André Uzeda
  • André Uzeda

Publicado em 3 de agosto de 2025 às 05:00

Imagens da passagem do Teatro Oficina por Canudos, durante a montagem da peça Os Sertões, dirigida por Zé Celso Martinez
Imagem da passagem do Teatro Oficina por Canudos, durante a montagem da peça Os Sertões, dirigida por Zé Celso Martinez Crédito: Rodrigo Sombra

No princípio, era apenas escândalo. Quase em ato contínuo, comprovando a eficácia da isca, transformou-se na mais profunda reflexão. Em 2025, completa-se a maioridade simbólica da passagem do Teatro Oficina à cidade de Canudos, no nordeste da Bahia.

Liderada pelo dramaturgo Zé Celso Martinez, morto tragicamente há dois anos, a companhia desembarcou na região do antigo arraial, palco do massacre estimado de 20 mil pessoas, trazendo a tiracolo polêmicas, ameaças de censura e a fama de convocar a plateia em cenas abertas de nudez e sexo.

A peça a ser encenada era uma adaptação do clássico Os Sertões, livro do jornalista Euclides da Cunha, escrito em tom de denúncia pela matança promovida pelo exército republicano na comunidade fundada pelo beato Antônio Conselheiro, às margens do rio Vaza-Barris.

Capa do livro ‘O Devorador - Zé Celso, Vida e Arte’, publicado pela Sesc Edições. Crédito: Divulgação
Capa do livro ‘O Devorador - Zé Celso, Vida e Arte’, publicado pela Sesc Edições Crédito: Divulgação

Essa história é um dos artigos do livro “O Devorador - Zé Celso, Vida e Arte”, organizado pelo jornalista Claudio Leal e recém-lançado pelas Edições Sesc São Paulo. A obra reúne textos de Caetano Veloso, Maria Bethânia, José Miguel Wisnik, Tom Zé, Gilberto Gil, José Carlos Capinan e um sem-número de outras grandes sumidades artísticas, partilhando memórias e impressões sobre Zé Celso.

Um dos que assinam sobre o impacto da ida do Oficina a Canudos é o jornalista e professor universitário Rodrigo Sombra. À época, aos 21 anos, era um jovem estudante e escrevia para o jornal laboratório da Faculdade de Comunicação, da Universidade Federal da Bahia.

Manifestando uma sensibilidade precoce, Sombra entendeu que havia ali uma grande história a ser contada. “No ano anterior, eu tinha assistido a apresentação de Os Sertões em Salvador e fiquei maravilhado com aquele tipo de teatro dionisíaco e participativo. Quando soube que eles viajariam para o palco originário onde se deu o massacre, fiquei curioso em narrar essa experiência”, diz, em entrevista à coluna.

Zé Celso tinha planos ambiciosos desde a concepção do projeto. Turbinado com verbas da Petrobras, viajou o Brasil com um grupo de quase 90 pessoas, reforçando históricas inimizades com religiosos e conservadores pelo habitual erotismo com o qual embalava suas adaptações. Entre tantos destinos, dois deles foram estrategicamente pinçados no itinerário da excursão: Canudos, na Bahia, e Quixeramobim, no Ceará – cidade onde nasceu Conselheiro.

A ideia, bradava o diretor, não era encenar Os Sertões como uma missa de repetição da chacina promovida pelo estado brasileiro, mas na perspectiva de um "des-massacre".

“Assim que desço do ônibus em Canudos, às 5 horas da manhã, me deparo com uma festa gigante. Parecia uma cena de Fellini. Uma ciranda recebendo as pessoas que chegavam com música e boemia. O Oficina é um teatro musical, celebratório”, rememora Rodrigo Sombra.

Público acompanha passagem do Teatro Oficina por Canudos, durante a montagem da peça Os Sertões,
Público acompanha peça Os Sertões, dirigida por Zé Celso Martinez Crédito: Rodrigo Sombra

Sexo, censura e consciência

Imbuído de espírito e lupa atenta similar a Euclides da Cunha, Sombra fez importantes anotações durante sua passagem por Canudos. A biblioteca da cidade, observou, tinha três míseros exemplares de Os Sertões, além de haver um genuíno sentimento por praguejar e maldizer Conselheiro e o arraial fundado por ele.

“A produção da amnésia financiada pelo governo brasileiro foi muito bem sucedida em Canudos. Percebi que as pessoas não se sentiam identificadas com aquela história retratada no livro, como se não fosse sobre elas. A própria inundação também se incumbiu de induzir violentamente o esquecimento”, apontou o jornalista.

Em um ação iniciada por Getúlio Vargas, mas só concluída em 1968, durante a Ditadura Militar, a antiga cidade foi alagada para a construção de um açude. A operação envolveu a transferência dos moradores para o povoado de Cocorobó, que passou a se chamar Canudos, atualmente com 16 mil habitantes. Em períodos de estiagem, as águas baixam e revelam contornos do antigo vilarejo.

Para fazer submergir a memória coletiva tragada diante do esquecimento, Zé Celso montou uma parafernália sísmica hiperbólica naquele novembro de 2007 – quando o massacre completava exatos 110 anos. Uma réplica do Teatro Oficina foi arquitetada nas cercanias do Estádio Municipal Armandão durante os cinco dias de espetáculo.

A encenação completa teve 27 horas de duração, duplicando os capítulos do clássico literário. Como preço simbólico foi cobrado R$1,00 pela entrada – de olho no lucro, os cambistas majoraram o ingresso em até vinte vezes.

O rumor que precedia o Oficina antecipou controvérsias antes mesmo do desembarque da companhia. Moradores avermelhavam as bochechas e faziam troça diante da perspectiva de contemplarem atores nus em cima do palco.

O chefe da paróquia local chegou a ameaçar uma possível censura e o dramaturgo foi à imprensa defender a realização do espetáculo. “Um pingolim duro ou uma ‘estética que pode chocar os canudenses’ são mais importantes de tudo que queremos trazer, nós e todos que amam esta cidade no Brasil e no mundo?”, escreveu, em defesa da sua montagem.

“Zé Celso, muito malandro, abraçava o escândalo como forma de autopromoção”, conclui Rodrigo Sombra. O jornalista capturou, ao fim, o fascínio da plateia – ligeiramente ruborizada e extremamente seduzida – diante daquele universo teatral. Jovens, adultos e idosos (alguns deles parentes dos sobreviventes do arraial) compareceram à encenação e vislumbraram um despertar de consciência.

“Pude perceber uma espécie de reencontro com a própria história. Como se a experiência liderada por Antônio Conselheiro estivesse sendo revelada para aquelas pessoas diante dos seus próprios olhos, justamente no palco onde tudo aquilo aconteceu”, reflete.

Desmemória x des-massacre

Apesar da histórica passagem do Teatro Oficina por Canudos e do sucesso da montagem, o projeto liderado por Zé Celso – emulando Conselheiro um século depois – sofreu um fracasso clamoroso.

O projeto do des-massacre ia além de um cartaz promocional. Zé Celso ansiava por transformar Canudos em uma Cidade Mártir, a exemplo de Oradour-sur-Glane, onde moradores foram chacinados por soldados nazistas na França, ou Hiroshima, no Japão, alvo do primeiro ataque nuclear da história.

Seu projeto previa uma reparação histórica, educacional e ecológica, com iniciativas memorialistas e reparação aos crimes cometidos pelo exército brasileiro. A peça deveria ser um gesto inaugural desta iniciativa, mas não foi além da mera pontualidade.

“Eu não conheço a história de Canudos em detalhe, mas arrisco dizer que, talvez, a ida do Teatro Oficina tenha sido o gesto de política pública mais emblemático desde o massacre. Mesmo o projeto de Zé Celso não tendo continuado, o choque provocado lá, naquele 2007, não foi irrisório ou menor”, destaca Sombra.

Esta coluna é dedicada a Eduarda Uzêda, jornalista e atriz. Quem, desde menino, me ensinou a gostar de teatro.