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Reescrevendo o código da soberania

A soberania digital tornou-se essencial em um mundo onde tecnologia e meio ambiente ultrapassam fronteiras e desafiam o poder dos Estados

Publicado em 3 de agosto de 2025 às 05:00

Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2025
null Crédito: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2025

A recente chantagem do governo dos EUA, o horror diário em Gaza, a irresponsabilidade das plataformas digitais, a enchente que varreu o Texas e a onda de calor que castiga a Europa parecem, à primeira vista, episódios sem nenhuma conexão. Contudo, é justamente esse mosaico de ameaças que está reconfigurando a noção de soberania. Na modernidade, com o fortalecimento do Estado-nação, a soberania se consolidou como o direito de uma autoridade legítima proteger seu território, arbitrar conflitos internos e reagir a perigos externos.

Hoje, porém, a questão da soberania é ainda mais complexa. Na prática não adianta mais tentar focar apenas nas questões políticas ou econômicas. A mutação ambiental, por exemplo, deixou de ser apenas um tema secundário para a soberania moderna; na verdade tornou-se uma força tão impactante e ameaçadora que pode até desmontar a configuração clássica da soberania. Como lembra Bruno Latour, quando fenômenos climáticos atravessam fronteiras, fica claro que proteger um quintal já não basta, precisamos renegociar proteção, justiça e pertencimento em escala planetária.

O filósofo Yuk Hui, no livro Machine and Sovereignty (2024), acrescenta mais uma camada na mutação atual da soberania, se ela é, em última instância, o poder de exceção, ou seja, decidir quando e como suspender a lei. Agora esse controle deslizou do poder estatal para a megamáquina planetária, um vasto complexo técnico-econômico de plataformas digitais, algoritmos e infraestruturas globais que cresce mais rápido do que os próprios sistemas jurídicos estatais e passa a ditar quando e como a exceção deve ser acionada.

Por isso, a soberania no mundo de hoje também precisa ser digital: quem detém o conhecimento e o controle das tecnologias pode instaurar o caos num piscar de olhos, sem precisar de tanques nas ruas, nem disparar um tiro.

Quanto mais os países conseguirem construir alternativas de infraestrutura e conhecimento tecnológico, mas sustentável se torna o ecossistema como um todo. A concentração de tecnologia é tão perigosa quanto a monocultura na agricultura.

Vamos pegar o exemplo do Pix. Um projeto que começou a ganhar forma em 2016 através de um consórcio técnico liderado pelo Banco Central, com a participação de bancos públicos, fintechs e representantes da sociedade civil. Em 2018, o BC publicou os Requisitos Fundamentais para o Ecossistema de Pagamentos Instantâneos, que fixaram a governança, a infraestrutura e os padrões abertos que sustentariam a rede.

Depois do lançamento o Pix tornou-se, em tempo recorde, o sistema de pagamento mais utilizado do país. É realmente impressionante, hoje até pessoas em situação de rua já estão aceitando Pix. Sem esquecer que sua infraestrutura é pública, auditável e assentada em padrões abertos. Isso permitiu o desenvolvimento de inovações como o Pix Automático e o Pix Parcelado, avanços que podem fazer as operadoras americanas de cartão de crédito perderem o sono.

Mais que um simples meio de pagamento, o Pix acabou virando orgulho nacional e, não à toa, caiu no radar de investigações do governo norte-americano. Por que será? Talvez porque seja uma tecnologia que encarna, na prática, o princípio de que o poder de decidir sobre o seu funcionamento está sob tutela nacional.

Essa semana os Estados Unidos incluíram o ministro Alexandre de Moraes numa lista de sanções financeiras com base na Lei Magnitsky, que pune violações de direitos humanos. Com isso, Moraes está impedido de realizar qualquer operação que envolva o dólar. A medida gerou incerteza nos bancos brasileiros, especialmente sobre o uso de cartões internacionais com bandeiras americanas, como Visa e Mastercard, mesmo em compras feitas em reais. Mas o ministro vai continuar podendo fazer pagamentos locais como Pix, boletos e transferências em moeda nacional. Um exemplo que reforça a importância de manter uma infraestrutura financeira e tecnológica sob controle público.

Nesse sentido, é louvável a iniciativa da Rede pela Soberania Digital, que elaborou uma carta endereçada ao presidente Lula (veja no site https://soberania.digital/). O documento reconhece o esforço do governo para afirmar a autonomia tecnológica do país, mas alerta para três obstáculos centrais: (1) a fragmentação do tema entre ministérios e no Congresso; (2) a limitada articulação com a sociedade civil que já detém expertise acumulada; e (3) a narrativa “salvadora” das big techs que, na prática, manteria o Brasil dependente de suas nuvens e sujeito ao Cloud Act norte-americano. Na prática a Cloud Act permite às autoridades dos EUA requisitarem dados de empresas sob jurisdição americana, mesmo quando os dados estão armazenados fora do país. A carta também denuncia que órgãos como SERPRO e DATAPREV estariam atuando como “barriga de aluguel” para infraestruturas estrangeiras, aponta gastos públicos superiores a R$ 10 bilhões em apenas doze meses (resultante de contratos federais de software, nuvem e outros serviços de TI firmados com Big Techs). Por fim, a carta propõe a criação de uma força-tarefa colaborativa para formular um Plano Nacional de Soberania Digital.

Ironia à parte, o próprio site que coleta assinaturas para o manifesto, segundo consulta no WHOIS, está hospedado em servidores fora do país, lembrando que o caminho da soberania digital efetiva ainda é longo. Mas não devemos confundir a busca da soberania digital com o nacionalismo protecionista do atual governo dos EUA. Podemos continuar usando as tecnologias de outros países, mesmo porque o desenvolvimento delas é cada vez mais internacionalizado. O protecionismo brasileiro dos anos 1980, na época da “Política Nacional de Informática”, quando as Empresas estrangeiras foram proibidas de comercializar microcomputadores nos ensinou que levantar muros resolve o curto-prazo e cobra seu preço no futuro: além de encarecer o acesso a tecnologia e atrasar a curva de aprendizado, acaba reforçando a dependência justamente quando o resto do mundo avança cada vez mais rápido.

Soberania digital, ensina Yuk Hui, não se conquista erguendo muros, mas costurando alianças. Ela exige cultivar um ecossistema aberto, multiescalar e tecnodiverso, no qual o Brasil dialogue de igual para igual, troque saberes e se for necessário, migre de fornecedor sem se acorrentar. É uma política de interdependências conscientes: reconhecendo que os desafios são planetários, mas que recusa a dependência unilateral, apostando numa rede de cosmotécnicas que combina inovação local com cooperação global sem esquecer os impactos ambientais desse desafio.

(Esse texto foi coescrito com uma IA)

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP