REBOBINA

Água de Meninos: o cinema, vez ou outra, faz suas profecias; veja vídeo

Primeiro episódio do Rebobina revisita, através do cinema, a tradicional feira soteropolitana

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  • Christina Mariani

Publicado em 4 de outubro de 2023 às 09:50

Frame do filme
Frame do filme "A Grande Feira", de 1961. Crédito: Arte/Christina Mariani

Primeiro plano enquadra um velho trovador, seguido de um plano aberto que mostra um pequeno grupo de pessoas que o escuta atento. “A grande feira d’Água de Meninos vai se acabar. Vai acabar a grande Feira”, ele diz, enquanto vende suas histórias para alguns dos espectadores. Corte. Em quadro estão pessoas, mercadorias e saveiros aportados. A câmera se distancia, acompanha um homem que navega em um dos saveiros. Uma paisagem aparece. Ao fundo, um elevador e casarões coloniais: estamos em Salvador.

A descrição corresponde à primeira cena do filme A Grande Feira, dirigido pelo cineasta baiano Roberto Pires, em 1961. As palavras do trovador baiano, Cuíca de Santo Amaro, prenunciaram a tragédia que culminaria na extinção da feira Água de Meninos. Três anos após sua estreia, um incêndio pôs fim à tradicional feira soteropolitana, dando um desfecho às disputas de interesse que desejavam sua remoção. O cinema, vez ou outra, faz suas profecias. E, com certa distância do tempo, torna-se gerador de uma experiência estética que resulta num efeito de rememoração.

Quando dei fé desse artifício, resolvi guiar-me nos caminhos traçados pelo cinema para conhecer um pouco da cidade de Salvador. Curiosa que sou, pouco sabia sobre essa cidade que habitava os desejos juvenis das férias de verão. Morando aqui, com o aparato do jornalismo em mãos e o interesse de escavar a memória da cidade, aproveitei para embarcar nessas viagens históricas, mas para isso era necessário rebobinar a fita, ou melhor, o vídeo - porque minha geração é do digital. Para essa primeira viagem, através do especial audiovisual Rebobina, faço um retorno à Salvador dos anos de 1960.

“A Grande Feira” e o encontro com Água de Meninos

A Feira Água de Meninos surgiu em 1959, nos arredores do Sétimo Armazém das Docas, seu primeiro nome, aliás, Feira do Sete, era por causa de sua localidade. Esse mercado a céu aberto, no entanto, eu não conheci. Em 1964, foi extinto devido ao incêndio, e transferido para Enseada de São Joaquim, este, sim, conhecido e frequentado por mim. Conheci Água de Meninos através da música de Gilberto Gil e do filme “A Grande Feira”** que chegou até mim no segundo ano da faculdade de cinema, quando fui apresentada a Roberto Pires.

Muito embora nunca tenha assistido ou ouvido falar de suas obras durante as aulas, o legado do cineasta-inventor já era reconhecido por alguns colegas de turma. Diretor do primeiro longa-metragem baiano, Redenção (1959), e produtor do primeiro longa de Glauber Rocha, Barravento (1962), Roberto Pires foi ‘esquecido’ pelo Cinema Novo, enquanto estava mais interessado em reeditar a narrativa clássica hollywoodiana. A Grande Feira é, sobretudo, uma narrativa clássica, que traça a partir da feira e de suas personagens elementares, uma tragédia, no sentido lúdico e literal do termo.

Na trama, os “tubarões” do progresso tentam engolir a feira. O sindicato dos feirantes e os pequenos comerciantes não sabem como enfrentar esta ameaça. Paralelo ao temor do despejo, acompanhamos Ronny, um marinheiro sueco e canastrão imerso em amores contrariados. Um deles é Ely, uma jovem burguesa casada e entediada, interpretada por Helena Ignez. Todo o enredo é entrelaçado pelas ações de Maria da Feira, personagem que encarna aquele espaço, não apenas vivendo através do que a feira lhe oferece como dedicando sua vida pela sua manutenção.

As profecias conclamadas no filme não cessam com o prenúncio do fim da feira, se estendem até o modo como se dará o seu desaparecimento. Outro personagem importante, Chico Diabo, marginal simpático interpretado por Antônio Pitanga, descrente dos rumos da resolução organizada pelo sindicato, faz uma proposta perigosa: explodir a feira. É quando sentencia, “eles não querem a feira? Entregarei as cinzas”.

Fora da ficção, no entanto, especula-se que o incêndio foi movido por outros interesses, os dos mais poderosos. Apesar dos escassos registros oficiais das investigações sobre o incêndio, a Esso Brasileira de Petróleo foi a única responsabilizada. Sabe-se que as autoridades e empresários estavam incomodados com a permanência da feira, à época localizada no bairro do Comércio, afinal, a enxergavam como empecilho para as obras de ampliação do Porto de Salvador. Conta-se que em 1960, a prefeitura proibiu a construção de novas barracas, e não tardou muito para o fogo pôr fim no mercado popular.

As representações da feira no cinema

“A Grande Feira” não é apenas um retrato de um espaço da cidade de Salvador, mais do que isso é um retrato das dinâmicas sociais e econômicas restritas à feira, como um microcosmo da cidade, isto é, como se existisse uma cidade dentro de outra. A cidade da feira de Água de Meninos dentro da cidade de Salvador.

O modo como Roberto Pires filma Salvador neste filme é tão cotidiano quanto poético. O cineasta enquadra endereços facilmente reconhecíveis pelo público, a começar pelo Elevador Lacerda, cartão-postal que há muito habitava o imaginário popular sobre a capital. Por outro lado, ao distanciar a câmera, seguindo para planos abertos que enquadram o entorno, os saveiros, os casarões e a rotina da cidade, registra uma paisagem ao mesmo tempo provinciana e mundana. Entre os abismos das edificações coloniais e a poesia das vielas, Pires registra uma Salvador pelos olhos de quem viveu a cidade.

Mas se engana os que acham que o filme caiu no gosto de todos. Um antigo feirante, sindicalista e marinheiro de longa viagem, João Palma Neto, não gostou da maneira como a feira foi representada na produção. O crítico e pesquisador André Setaro, no seu prodigioso exercício de delinear a genealogia do cinema baiano, no livro “Panorama do Cinema Baiano” - onde descobri essa fofoca -, não entra nos pormenores da crítica de Palma Neto. Mas não me surpreenderia se o descontentamento fosse proveniente do exagerado protagonismo atribuído aos brancos e ricos, ou ao gringo, transformado em herói.

O ex-feirante, então, decidiu bancar do próprio bolso um outro filme, contratando o cineasta carioca Alex Viany para assumir a direção, já que considerava que os diretores baianos não seriam capazes de traduzir em imagens o que estava no roteiro. O resultado foi o longa-metragem “Sol sobre a Lama”, de 1964, em que a burguesia soteropolitana e gananciosa tenta destruir a feira, enquanto um grupo de feirantes se une para lutar contra a remoção.

O filme foi o primeiro longa-metragem colorido produzido no Brasil, e sofreu censura da Ditadura Militar por causa da quantidade de cenas de nudez, sendo exibido com muitos cortes. A cópia que assisti, no entanto, em péssimas condições tanto na imagem como no som, prejudicou a fruição da obra, ainda mais quando está em jogo uma trilha sonora que marcou o início da parceria entre Vinicius de Moraes e Pixinguinha. Mas para além das limitações técnicas, “Sol sobre a Lama” está mais interessado em ecoar um discurso do que em exteriorizar a feira, inserindo-a na dinâmica da cidade, como faz o filme de Pires.

Ambos os filmes, de todo modo, reafirmam a importância da memória cinematográfica, na medida que nos possibilita encarar o cinema como um meio de rememoração. Os filmes são registros de uma Salvador do passado, e suas imagens ganham uma sobrevida ao possibilitarem a revisita de um lugar que não existe mais. A Feira Água de Meninos existe apenas na lembrança dos que a conheceram e em imagens. Essa é a razão pela qual o Rebobina surge, para ecoar a história de lugares e personagens que protagonizaram momentos do cinema baiano.

*Sob surpervisão de Jorge Gauthier

**O filme está disponível de forma gratuita no Youtube, com cópia restaurada, graças ao trabalho de preservação do Instituto Memória Roberto Pires.