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Da Redação
Publicado em 14 de maio de 2022 às 11:00
Caro professor, >
Espero encontrá-lo bem. Sou a pessoa que escreveu aquele post dizendo que deu preferência a mulheres negras, em seguida a mulheres de qualquer etnia e só depois abriu a possibilidade de ser atendida por homens, quando da escolha de profissionais de saúde para um check-up do núcleo familiar. Postei isso em meus perfis fechados - e de poucos seguidores - ainda com o aviso de que se alguém viesse falar de "racismo reverso" eu bloquearia. Usei a palavra "merda", inclusive, para me referir a esse tal discurso. Sim, mal-educada. Num perfil fechado. Pessoal. Onde há o aviso "aqui não é trabalho". Pois bem. >
Alguém, entre meus poucos seguidores, achou boa ideia printar o meu post e fazê-lo chegar ao seu conhecimento. Às vezes, as pessoas gostam de mim e eu nem sei. Fazem o bem até de forma inconsciente, talvez. Veja, foi muito útil relembrar que "fechada" e "pessoal" é minha casa, né? E olhe lá, que pode acontecer de a gente receber, inadvertidamente, certo tipo de vivente que tem por mau hábito comentar certas intimidades com terceiros. De forma que privacidade é um negócio todo frágil e eu já vou tirar esse papo de que "não é trabalho" dos meus perfis. Que mesmo não sendo, acaba dando trabalho do mesmo jeito. Até literalmente, vide este exemplo no qual um post doméstico vira meu artigo da semana. Isso porque, a pessoa "indiscreta", além desse que já citei, me fez mais dois favores. >
O segundo favor foi me lembrar que "se não aguenta vara, peça cacetinho" ou "se não sabe brincar, não desce pro play". Quer dizer, se eu não quisesse discutir o assunto, fizesse minhas escolhas caladinha e continuasse postando fotos das minhas duas lindas gatas. Se publicizei uma postura, abri discussão e preciso dar conta dela, inclusive porque já passei oito anos dos quarenta, não tem mais charme nisso de "só eu que falo e pronto, acabou". Nem no profissional nem no pessoal, como dizia aquele rapaz da televisão. Relembrada de tudo isso, se eu pudesse voltar no tempo, não teria publicado o que publiquei. Não por nada, mas é que, em determinados temas, me sinto pregando pra convertidos/as ou obrigada a interlocutores/as de baixíssimo nível de civilidade. Uma boa prosa, com o contraditório posto de forma saudável, tem sido artigo raro no Brasil contemporâneo, o senhor sabe. >
Mas é bom não poder voltar no tempo. Isso porque o terceiro e último favor do/a fofoqueiro/a virtual foi me fazer atentar à importância do objeto que, àquela altura, me parecia prosaico. Este favor ainda trouxe, de brinde, um interlocutor altamente qualificado. Pois o seu comentário chegou até mim (quem leva dá um jeito de trazer, mesmo arriscando o pretendido anonimato), também em print, por WhatsApp. Eu não uso o Twitter. Imagine a ginástica que a pessoa fez pra conseguir construir essa ponte, coitada. >
Esse esforço "anônimo" me fez perceber que o que eu propus em meu post e o seu comentário fazem parte de uma discussão que tem relevância coletiva, sim. Então, não faz sentido deixar isso "fechado" e sob as brumas de qualquer anonimato. Por isso, tomei a liberdade de me apresentar (havia um tracinho sobre o meu nome, em seu tuíte) e publicar esta carta no lugar do meu artigo desta semana. Evidentemente, já disponibilizando este espaço (nas versões impressa e digital), no próximo fim de semana, para um texto seu, sobre o tema, caso ache interessante. Adianto que me honraria e tenho certeza de que enriqueceria a todos/as. Mas fique à vontade. >
Cada pessoa pode ter seu próprio "sistema de cotas" pessoal? É esse o objeto que me parecia indiscutível, mas me foi reapresentado, pelo senhor, com muitas "camadas" sobre as quais passei a refletir. Não tenho a sua vastíssima formação acadêmica. Talvez, nem capacidade cognitiva suficiente para alcançar as sutilezas e cabriolas das mentes mais brilhantes. Mas, o senhor vem popularizando, nas redes sociais, as discussões mais profundas. Além disso, dormi bem a noite passada (coisa rara, a insônia tá demais) e meu filho diz que eu sou corajosa. Então, vou tentar. É muita pretensão? >
Sobre o meu post, o senhor comentou assim: "Sou de uma geração em que ser de esquerda era lutar CONTRA todo o tipo de discriminação. Agora, ao que parece, discriminar virou legal, progressista e supercool, desde que se discrimine o vetor certo. Acerte o vetor e você pode fazer tudo o que condenava em racistas e machistas". Numa primeira leitura, professor, confesso que achei simplista. Rudimentar, elementar, básico, principalmente quando pensei nos sentidos da palavra "discriminação". Mas, veja, eu não li tudo o que o senhor leu e talvez me falte perceber que "a simplicidade é o último grau de sofisticação". >
De todo modo, assumi o proposto sentido negativo da palavra "discriminação" e fiquei aqui embatucada, pensando se o senhor estava dizendo do que a esquerda é (desde o nosso tempo que não sou nenhuma novinha) na teoria ou na prática. Não quero entediá-lo com neologismos de militância, mas já ouviu falar dos tais "esquerdomachos"? Tipos comuníssimos - de esquerda e com ideias progressistas - que até ocupam lugares de destaque nas mais diversas frentes "de combate" mas que, pela atuação na relação entre gêneros, já contradizem a parte "lutar contra todo o tipo de discriminação" da sua afirmação. Se eu te contar, Iaiá, você vai se pasmar. >
(Ainda sobre esse primeiro ponto, poderíamos seguir testando a realidade, checando percentuais de mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e pessoas trans, por exemplo, em posições relevantes dentro dos quadros dos partidos de esquerda. Mas, sigamos sem pirraça.)>
Sim, está nos pilares da esquerda a luta contra todos os tipos de segregação social. Exatamente por esse motivo, vem da esquerda a ampla divulgação do conceito de "reparação social" posto em prática com dispositivos como sistema de cotas em universidades e outros ambientes de "privilégio". Ações veementemente rebatidas por quem prega a "igualdade" não compreendendo o óbvio: numa sociedade como a nossa, só podemos começar a pensar em justiça social se tratarmos grupos sociais de formas diversas. Como é o nome disso? Discriminação. Evidente que sim. Ou seja, discriminar é o que fazemos para lutar contra a "discriminação".>
Diferença, distinção, diferenciação, discernimento. É pela compreensão desses significados que a mulher negra brasileira (cis ou trans) será sempre a minha primeira escolha em tudo que possa ser benefício. Exatamente porque, em nossa perversa hierarquia social, ela só consegue estar acima dos próprios filhos pelos quais, na maioria das vezes, é a única responsável. Eu não sei se a minha postura é "legal, progressista e supercool" como o senhor afirmou. Também não ando muito preocupada com isso. Eu sou uma pessoa fora de moda, acredite. Até como carne, fumo e não faço crossfit. Quer coisa mais antiquada? >
Deixa eu lhe contar uma coisa. Naquela clínica, não havia uma médica negra para atender a mim e ao meu filho. Marquei com uma mulher branca, agenda facílima. Por curiosidade, perguntei qual a disponibilidade de data do médico branco. Primeira possibilidade era só no mês que vem. E para "encaixe", como chamam a gente ficar lá esperando pra ser atendido na hora que der. Percebe que ele não precisa de mim? Percebe que o sucesso, a progressão da carreira, a legitimidade, a vasta clientela, que tudo nele já está assegurado? >
Não se trata, professor, de me negar a ser atendida por médicos (ou qualquer outro tipo de profissional) brancos. Não sou maluca. Inclusive, meu avô foi um médico branco, meu pai é um. Meu melhor namorado foi um médico branco. Tenho um grande amigo que é médico branco e Dr. Cavalcanti, um médico branco, é a quem devo não ter enlouquecido com as doencinhas comuns de meu bebê, numa cidade do interior. Sou afetivamente envolvida com gente de muitas etnias e cores de pele. Não tenho qualquer problema com homens brancos, na minha vida pessoal. Apenas sei o lugar que ocupam e reconheço que, como grupo social, eles não precisam de mim pra nada. >
Viver, pra mim, é, também, atuar na coletividade. Então, sim, tenho meu próprio "sistema de cotas" quando busco profissionais. É um check-up numa clínica onde nenhum desses amados médicos brancos trabalha. É a que meu plano de saúde cobre. Então, peço por uma médica negra. Da mesma maneira que, não tendo relação afetiva com nenhum/a atendente em uma loja, me dirijo à mulher negra para ser atendida. Do mesmo modo que abasteço meu carro com a frentista negra, se houver. Nós sabemos, eu e elas, o quanto vale "ter a preferência do/a cliente" num mercado de trabalho que apenas parece includente. Conhecemos os bastidores, professor. Eu e elas. Principalmente quando a maternidade se inclui. >
Também sonho (e trabalho, todos os dias, para) com um mundo no qual ninguém seja nem precise ser "discriminado". Agora, a palavra empregada em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Aí, o senhor sugere que eu faço o mesmo que racistas e machistas. Sim, me senti ofendida. Essa parte achei desonesta porque, evidentemente, não lhe faltam recursos intelectuais. Conduzir a manada à falácia não é legal, progressista nem supercool. Eu não acho. "Racismo reverso" à essa altura do campeonato? Dizer que feminismo é o mesmo que machismo em 2022? Não. Não dá.>
Por essa linha, precisaríamos questionar o conceito de feminicídio, as políticas inclusivas, e até a existência das delegacias especializadas em violência contra a mulher. Programas de transferência de renda também seriam negativamente discriminatórios, pensando assim? Porque todas as políticas afirmativas e de reparação têm como base, exatamente, discriminar. Ou tudo vale no coletivo e institucional, mas vira absurdo se praticado em âmbito individual? Tratar cada pessoa em seu próprio contexto é algo que vem sendo ensinado pela esquerda. Mas eu posso não ter entendido nada, claro.>
Gosta de assistir corridas? Eu não. Mas elas trazem uma boa metáfora. Tem o grid de largada, não é? Os carros (pessoas, motos, bicicletas) não saem lado a lado. Não sei quais são os critérios ali, nem o que garante bons resultados. Mas na vida a gente larga assim também. Uns lá na frente, alguns no meio, outros lá atrás. Não estamos lado a lado. Justamente por isso, vou continuar ajudando a abastecer o tanque de quem acho que está em desvantagem. Tô ali pelo meio. Por isso, posso ajudar, mas também aceitar a ajuda de quem percebe as minhas próprias desvantagens em relação aos eternos pole positions, aos que largarão sempre à frente, só por existirem, independentemente de competências específicas e habilidades. >
É como diria aquela cantora Kátia, professor: "não está sendo fácil". Eu podia estar aqui na minha, o senhor aí na sua, cada qual em sua paz. Mas o povo fofoca demais, quer ver treta, por isso que o Big Bróder faz sucesso e acharam essa edição chata que o povo brigou de menos, pelo jeito. Mas o senhor não disse que eu sou "mal amada" (alguns leitores amam dizer isso... haha) nem eu lhe chamei de chato (falam isso do senhor, já ouvi). A discordância é na matéria, em um tema que merece ampla discussão, e isso me dá prazer. Não é pessoal e, justamente por não ser, veio parar aqui. Foi bom variar no estilo, fazia tempo que eu não escrevia uma coisa parecendo carta. Mas não é forçar uma intimidade inexistente, foi só recurso de linguagem, certeza de que o senhor entendeu. Fique à vontade, também na forma, caso sinta vontade de "responder". >
Forte abraço, Flavia >