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Flavia Azevedo
Publicado em 22 de julho de 2018 às 11:44
- Atualizado há 2 anos
Eu devo ter feito algo errado no Instagram porque o fato é que entrei numa bolha de gente que "treina" compulsivamente, injeta ácidos pela cara toda e tem corpos claramente esculpidos em cirurgias. Um mundo bem louco no qual, inadvertidamente, fui parar.>
(Eu sempre soube que isso existia, claro. E mesmo de longe, vejo os modelos, sofro o assédio, sou interpelada pelos padrões. Mas nunca havia mergulhado nisso e fiquei pasma)>
Quando percebi onde estava, passei uns dias imersa em postagens observando como se comporta essa fauna. Uma super oportunidade! O mundo virtual é a única chance que tenho de conhecer gente assim. Nenhuma dessas pessoas se interessaria por mim. Nem eu por elas, na vida real.>
Gastei horas examinando perfis e tentando entender uma determinada escala de prioridades. E, sim, eu julguei, portanto podem me apedrejar. Não foi possível achar natural um mundo todo feito de fotos do "antes e depois" e de corpos que, no "depois", são absolutamente iguais a todos os outros do mesmo gênero e faixa etária. E de gente que entende esculpir o corpo como meta de vida. E de rostos inexpressivos. E de bocas que parecem estar passando por crise alérgica das brabas.>
(O perfil da atriz @marianalima1972, milagrosamente aparece, de vez em quando, pra me salvar.)>
(Num dia, fiquei tão entediada que fui para a frente do espelho olhar meus peitos naturais e minha barriguinha honesta. Achei ótimo pontuar alto no quesito "originalidade". Mas, divago.)>
E eu estava justamente nessa viagem quando o famoso "Dr. Bumbum" (de quem eu jamais tinha ouvido falar) matou a moça num procedimento, feito em casa, para deixá-la com a bunda mais avantajada. Posso falar de boa? Não me surpreendeu em nada. >
Se eu precisasse ter uma bunda perfeita pra ser feliz, eu também faria o "preenchimento", camarada. E a depender do tamanho do meu vazio (no traseiro e na alma) contraposto à minha conta bancária, seria até na cozinha de uma lanchonete, se fosse mais barato. É desejo, necessidade, vontade. É desespero. Uma puta fragilidade. Não é "futilidade" quando você vive num mundo onde seu corpo precisa caber num modelo pra que você seja amada.>
Morremos de diversas coisas. No meu caso, se eu não conseguir parar, provavelmente por fumar cigarros. Outros de crack, de álcool, comida em excesso ou açúcar demais. Boa parte dos humanos morre por atender ao que passou a ser a sua mais absoluta necessidade. Varia o objeto, mas é a mesma urgência, em todos os casos.>
Perceba, portanto: existe um mundo onde o "Dr. Bumbum" é necessário. Tipo traficante, muambeiro, o cara que vende barato. E não é só ele. Que vai preso agora (é um assassino, tem que ser condenado, tomara!), mas não vai adiantar nada. Porque há muitos, em cada esquina, dando conta da demanda de mulheres com menos grana, mas "necessidade" idêntica à da rica que pode pagar o melhor cara. Elas sabem que podem morrer, mas não se importam porque acham que vale.>
(É o mercado: quem pode pagar, cheira a pura e o traficante entrega em casa. Quem não pode, vai buscar na boca e cheira cocaína misturada com anfetamina, talco e pó de mármore.)>
A moça que morreu não foi uma louca e estranha exceção de comportamento condenável. Não foi "fútil". Dentro de uma determinada lógica, ela vez o que devia ser feito, o que era importante na escala de prioridades. E por mais que você pense agora "morreu por uma banalidade", sabe que essa questão só é tratada assim porque, no caso dela, deu errado. >
Essa moça apenas fez o que, num determinado ambiente, se espera de uma mulher "de verdade". Deu um jeito, foi atrás da "beleza", do padrão. Ela cumpriu seu papel e agora a hipocrisia coletiva diz "mas por que? Não precisava!". Precisava, sim. Infelizmente, precisava. Era importantíssimo. Você sabe. >