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Flavia Azevedo
Publicado em 16 de dezembro de 2023 às 11:00
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(Para Leo, com todo o meu amor.)
Algumas mulheres experimentam orgasmos em partos naturais. Procure saber e veja que acontece, por mais estranho que possa lhe parecer. Entendo que essa informação incomode muitas pessoas. Outro dia mesmo, na minha lista de músicas de Carnaval, o moço do Olodum cantava, mais uma vez, que “mãe que é mãe no parto sente dor”. Isso é o “normal”: o amor materno ser imenso, o maior de todos, porém sofrido - para sempre e desde o momento inaugural.
É o “preço” que pagamos pelo assustador poder de fabricar humanos dentro das nossas barrigas, essa possibilidade grandiosa que também é materialização da nossa tão perturbadora sexualidade. Os exaltados incômodos da gravidez, a “intransponível” dor do parto, o olhar que desqualifica o corpo que pariu, a solidão da mulher nos afazeres da maternidade, o conceito do “sofrimento” eterno e inevitável. Tá tudo junto na função de limite, punição e até de certa “vingança”, se a gente for falar a verdade.
Esse é o cenário e não dá pra desconstruir tudo de vez. Porém, se muito conscientes e críticas do nosso lugar social (e da inevitável base judaico-cristã), podemos ter alguma chance de parir quase todos os partos que a maternidade de cada filho impõe, sentindo prazer. Sim, porque parimos o recém-nascido, depois o bebê que não mama mais, o que largou as fraldas, o que anda sozinho, a criança que vai para a escola, o adolescente e, finalmente, o adulto. Todos no mesmo filho.
Em cada um desses “partos”, o mundo sugere “dores” as mais variadas:“poxa, não tem mais o cheirinho de bebê”, “desprezou a mãe, prefere o colo do pai”, “ele estava bem até você chegar”, “já tá maior, agora te acha chata” e mais uma infinidade de mini sofrimentos vão sendo afirmados. Por fim, quando viram adultos e cumprem o destino da independência, sempre chega alguém pra lembrar, com olhos melancólicos: “agora é a Síndrome do Ninho Vazio”. Tá, até pode ser. Mas a gente nasce é pra voar.
Para cada salto de desenvolvimento, o correspondente e inevitável afastamento, claro. Mas em todos os cortes, há novas possibilidades de conexões com o filho que se transforma. Basta que se queira conectar. O maior amor do mundo é assim, riquíssimo. Também dinâmico e tão generoso que, com o passar do tempo, vai nos devolvendo a individualidade perdida lá na concepção, quando viramos dois. Aos pouquinhos, bem devagar, enquanto a individualidade da pessoa que fizemos também se constrói. Isso é todo dia e dá trabalho. Inclusive, informo que infância só passa rápido para quem não estava lá.
Ao desenvolver cada habilidade, meu filho me devolve a parte de mim da qual não precisa mais. Aprendeu a comer sozinho, devolveu meus aviõezinhos imaginários e onomatopeias fofas. Aprendeu a andar, devolveu meu colo em pé (o colo sentado é dele pra sempre). Aprendeu a ler, me devolveu a minha voz de contar histórias infantis. Assim, vou, aos pouquinhos, me recebendo de volta. Até aquelas partes que nem existiam antes dele e agora preciso descobrir como administrar. Aí, cada uma decide, com os próprios recursos, se esses momentos serão deliciosos ou dramáticos.
O mundo sugere que eu lide mal. Que me encerre na identidade mãe, que chore a devolução do que meu filho não precisa mais. Que sinta tristeza por ser progressivamente prescindível, que eu lamente cada despedida. Finalmente, que eu plante nele – com a exposição do meu drama – a culpa por querer (poder, saber) voar. Tô foríssima. É muita sacanagem. Comigo, com ele, com todas as mães e todos os filhos de todos os lugares.
Não há santo que me faça reclamar do retorno de “minhas partes” e do meu tempo livre, conforme o maior amor da minha vida avança nas idades. Agora mesmo, como faz todo verão, ele vai passar 40 dias com o pai, em outro estado. Estamos felicíssimos, ambos! Não, eu não estou sofrendo, muito pelo contrário. Meu filho sabe que o que me importa é sabê-lo feliz, seguro, saudável e bem cuidado. Eu sei que ele sente o mesmo. Ambos conhecemos as regras desse afastamento físico temporário e confiamos no nosso vínculo inquebrável. Somos nossos e isso foi construído com muita competência, por nós dois. Então, que comece a farra!
Tem preocupação, tem saudade, tem todas as recomendações, tem eu cobrando notícias e mandando muitas mensagens, tem a contagem diária de quantos dias faltam pra ele voltar. Sempre terá. Mas tem também curtir demais essa vantagem de certo tipo de maternidade solo: a mãe poder parar pra se acertar, enquanto o filho está com alguém que tem o mesmo grau de obrigação e responsabilidade. O exercício é, nessas ocasiões, a gente se sentir, de verdade, liberada.
Pra fumar na sala, jantar mortadela e ser péssimo exemplo para crianças. Pra namorar sem hora marcada. Pra ser irresponsável ou responsável, conforme a minha vontade. Pra pensar em singular. Pra me reencontrar com “eu” posto em primeiro lugar. Ou pra cair – e até me demorar – no vazio do “sem função”, pelo qual, inevitavelmente, iremos passar. Pra me juntar, pra me espalhar. Pra silenciar. Pra me encantar por novos assuntos, lugares e pessoas. Pra alguém me olhar e nem saber que sou mãe. Por mim, mas também pra estar mais interessante, mais livre, melhor quando ele voltar.
Eu sei que é construção. A minha começou enquanto eu amamentava meu bebê na porta daquele prédio no Rio para, em seguida, devolvê-lo ao exercício do direito dele de passar o fim de semana com o pai. Eu arrasada. De lá pra cá, foi muita estrada até este momento de prazer sem culpa alguma. Agora, fico é excitada. Tenho necessidade dessas pausas, conto com elas. Se você tá no começo do caminho, posso ajudar.
Diferente daquela música triste, chore se der vontade, deixe os panos sem lavar e viva um romance. Ou não viva isso e sim aquilo. Foco é na delícia de que “a mãe” está em modo avião e você pode um monte de coisas das quais talvez nem se lembre mais. Então, comece a lembrar. Prometo que, com o tempo, se cuidando direitinho, seu filho pode até gostar das férias e esperamos que goste. Mas você? Ah, companheira, você vai ADORAR!
(Sabe esses pensamentos intrusivos que gostam de nos assombrar? Corte todos eles. Filhote vai bem, fica bem e volta ótimo, cheio de histórias pra contar.)
(Evidentemente, este texto se refere a relações com pais funcionais. No caso de genitores abusivos, negligentes e afins, esse momento é torturante para crianças e mães. Aí, só a medida protetiva – ou visitação monitorada – salva.)
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo