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Carolina Cerqueira
Publicado em 21 de junho de 2025 às 05:00
Quem passa pelo número 653 da Avenida Princesa Isabel, em Salvador, se surpreende ao encontrar um sapato de jazz exposto na calçada para quem quiser ver. Jazz é o nome do edifício. Mas por que um sapato? A explicação está no nome destacado na placa: Waldemar Calçados. >
Foi ali, onde hoje está o Edifício Jazz, que funcionou a loja de uma das marcas mais famosas entre a elite baiana. A escrita aparece com W, assim como na fachada do novo endereço da loja. Mas o sapateiro garante que é com V, letra que está nas marcações dos calçados antigos. >
“Seu Waldemar, sapateiro de sucesso internacional, por muitos anos exerceu suas atividades neste endereço, confeccionando sapatos até para o papa”, diz a placa que acompanha o sapato de jazz feito por Valdemar Santos Almeida especialmente para o edifício, erguido em 2020. >
O papa em questão é o João Paulo II. Na lista de clientes ilustres estão ainda Chacrinha, Cid Moreira, Roberto Carlos, Jerry Adriani, Wanderléa. Também é citada a família de Tales de Azevedo e as esposas dos governadores do estado. >
A homenagem das construtoras Civil e Barcino Esteve, que assumiram o terreno, deu início a um novo capítulo da história da famosa sapataria, que começou 1955. A loja mudou para o bairro da Pituba, no número 1021 da Rua Professor Augusto Machado. A quantidade de funcionários foi reduzida e os 400 passarinhos que Valdemar criava e eram ícones do local foram soltos aos poucos.>
Novos rumos para a Valdemar Calçados>
Assim como um filho que cresce, vira passarinho e quer voar, a loja também criou asas. Valdemar, hoje aos 83 anos, deixou o filho que tão bem criou para o mundo e só faz visitas a ele. Elas acontecem aos finais de semana, quando o sobrinho Vicente Gonçalves, de 67 anos, busca-o na casa Accabem, instituição de caridade onde Valdemar mora com outros 77 idosos, para passear. >
Quem está à frente da marca agora é Cláudio Ribeiro, de 45 anos, funcionário da loja desde quando ela ficava na Princesa Isabel. “Eu comecei a frequentar lá aos 11 anos, por conta do meu pai. Eu ia depois da escola, de tarde, e ficava observando meu pai trabalhar”, lembra Cláudio. >
Valdemar é só elogios ao acabamento que o antigo aprendiz dá aos calçados. Durante a entrevista para a reportagem, na sede da Accabem, em Lauro de Freitas, ele faz questão de tirar o sapato novo que está no pé, da própria marca, para exibi-lo. “Isso aqui é coisa boa, não é qualquer um que faz uma sandália dessa”, diz. >
Cláudio conta que, de tanto observar, aprendeu e, assim como o pai, passou a trabalhar na loja. Ao lembrar do auge da marca, lamenta que hoje o cenário dos calçados não seja mais o mesmo. “As pessoas compram sapato até pela internet, então é mais complicado. Nunca deixamos de atender encomendas, mas hoje fazemos mais consertos. Para a fabricação, eu tenho um modelador, Jorge, que trabalha lá e só”, explica o sapateiro.>
A fama>
Valdemar lembra que já chegou a ter 80 funcionários. Tudo começou na Baixa dos Sapateiros, depois veio uma sequência de mudanças. A loja foi para a Saúde. “A velha guarda toda comprava sapatos lá”, diz. Mudou para a ladeira da Barra, onde primeiro ocupou um endereço e, depois, outro mais perto do Porto da Barra, antes de ir para a Princesa Isabel. Era quase vizinho do Grande Hotel da Barra. >
“A Globo tinha uma parceria com esse hotel e os famosos ficavam lá. Eu tomava banho no Porto com esse pessoal, iam trocar de roupa lá em casa, que era o mesmo lugar da loja”, explica o sapateiro. “No dia que você se bater com esse pessoal, fale meu nome, todo mundo conhece”, emenda. >
Até nas fofocas dos famosos Valdemar se meteu. “Inventaram que Wanderléa era minha namorada”, lembra ele. A marca estava no auge. Chegava a produzir 150 pares por dia. “Pega a forma, risca, faz o desenho, corta, costura, sola”, lembra a sequência. Sapatos de todos os jeitos, de todos os tamanhos. >
O sobrinho Vicente lembra bem da movimentação dos famosos. Começou a trabalhar na loja aos 14 anos, quando o endereço era a Ladeira da Barra. “Eu ajudava na produção daqueles tamancos de madeira, comprava material, atendia cliente, entregava encomenda, ficava no caixa. Eu fazia de tudo um pouco, foi muito aprendizado”, lembra. Depois, Vicente e o irmão abriram os próprios negócios, também no ramo de sapatos. >
O sobrinho trilhou o mesmo caminho do tio. Vindo de Ubaíra, de uma família de 11 irmãos, o menino Valdemar que montava cavalo e pegava passarinho chegou em Salvador aos 12 anos para trabalhar na fábrica de calçados do irmão. “Com um mês e pouco, eu já fazia melhor do que todo mundo. Não sei por que, dizia o pessoal que era dom”, conta o sapateiro, que logo foi abrir o próprio negócio. >
Botas para inverno. Bolsas de couro. Saltos altos de madeira jacarandá que eram sucesso entre as mulheres. Sandálias para as misses. Um tamanco ortopédico que rodou as festas badaladas da capital baiana. “Só dava ele, acho que pegou no mundo todo. Se fizer ele de novo, vai ser o mesmo sucesso”, se gaba Valdemar. >
Também atendia a pedidos especiais, seja para pessoas com alguma deficiência, para os homens que queriam ganhar uns centímetros a mais de altura ou para as mulheres que precisassem de um número que não encontravam por aí. “Tinha sapato de mulher até 52. Eu fazia, só não ia dizer de quem era, né?”, se diverte o sapateiro, que não deixa ninguém esquecer que ele também fazia consertos. “O sapato chegava velhinho e voltava novinho”, lembra.>
Paixão pelo ofício>
Para toda lembrança que conta do passado, Valdemar faz questão de atualizar o tempo verbal. Ele não deixou de fazer sapatos; se precisar, ainda faz. A marca não acabou depois que ele se afastou; ainda existe, sob o comando de Cláudio. Seus clientes não compravam sapatos da sua loja; compram, até hoje. >
Não esconde que adora a fama que tinha...quer dizer, tem. “Cláudio outro dia falou que os clientes ficam perguntando por mim lá o tempo todo”, conta. Quando questionado se os clientes o reconhecem quando ele vai até a loja, responde: “Reconhecem em qualquer lugar.” >
A informação é confirmada por Maria de Fátima, presidente da Accabem, instituição onde Valdemar vive. “Num dos eventos para o qual levamos os idosos, a mãe de uma moça reconheceu ele, disse que só fazia sapatos com ele”, conta ela. “Estou esperando até hoje ele fazer um sapato desses para mim”, acrescenta, rindo. >
Fátima, como gosta de ser chamada, garante que Valdemar compartilha que encontrou na nova moradia uma família. “Ele se adaptou bem. Participa das terapias com música e das atividades que a assistente social promove, como o bingo. Também participa da doutrinária nas quartas e nos sábados”, diz a presidente da instituição. >
Valdemar se mudou para lá há cerca de três anos, depois de começar a apresentar problemas de saúde, segundo o sobrinho, Vicente. “Tem uns cinco para seis anos que ele se afastou da loja”, conta. Depois de uma queda da cama, desenvolveu um problema na perna. “Uma médica disse que ele estava com parkinson, chegou a tomar alguns remédios e ficou bem debilitado. Depois, outro médico trocou o remédio e ele voltou a falar direito, se levantar sozinho, comer cozinho. Hoje, ele está melhor do que eu”, brinca o sobrinho. >
Valdemar anda devagar e ainda precisa de auxílio para algumas atividades. Foi essa dependência que o levou a Accabem. Fátima lembra que ele chegou debilitado. “Eu achei que ele não fosse se adaptar, mas melhorou muito e está bem morando aqui”, compartilha ela. >
Vicente diz que o tio se aposentou e, mesmo se não fossem pelas questões de saúde, estaria afastado. “Ele cansou dessa vida de fazer sapatos todos os dias”, analisa. O que não significa que a paixão pelo ofício acabou. Continua espalhando aos quatro ventos o orgulho que sente da história que construiu. Os olhos continuam brilhando quando encontra um bom sapato. Até compartilha o segredo: a combinação de um material de qualidade com um sapateiro de qualidade. >
A empolgação continua a mesma de sempre enquanto concede a entrevista. Faz questão de pegar no quarto uma sacolinha que cabe no colo, mas carrega o mundo. Vai tirando de dentro dela fotos e mais fotos, matérias e mais matérias de jornais. Anos e anos da Valdemar Calçados. >
Ali estão recortes de jornais das entrevistas que já concedeu ao longo da vida como fabricante dos sapatos dos famosos, registros das gaiolas onde ficavam seus amados passarinhos, fotos das misses e modelos que usavam seus sapatos, lembranças do seu encontro com Dom Avelar para entregar os sapatos do papa e até uma carta, com o selo do Vaticano, com um agradecimento de João Paulo II pelo presente recebido. >
A carta é de 1980, ano em que o papa visitou Salvador. A história pode até parecer de outro mundo, mas está tudo documentado na sacolinha que vale ouro para ninguém duvidar. “Sua Santidade [...] concede de coração ao ofertante, aos seus familiares e pessoas queridas, uma propiciadora Bênção Apostólica”, diz o documento plastificado. Com a bênção de ninguém menos do que o papa, a história que começou em 1955 já completa 70 anos. >