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Acho que este texto pode irritar muita gente. Especialmente, mulheres que sofreram ou sofrem violência doméstica e estão apegadas à certeza de que nada nelas compactuou com esse sofrimento. Reconhecer que, muitas vezes, “autorizamos” a escalada violenta cujo pior desfecho chamamos de “feminicídio”, dói. É pesado, é assustador. Dá vergonha, até. Mas acho necessário. Pensar sobre nós mesmos nem sempre é gostosinho, mas quando vem até certo ódio, aí é que chegamos ao ponto que precisamos visitar. Toda terapia séria não é assim?
Veja: todos nós gostaríamos de parar nos semáforos com tranquilidade, de circular tarde da noite sem qualquer preocupação. Há lugares no mundo onde isso é possível, mas na maioria das cidades brasileiras esse comportamento é “de risco”. Não é justo, não é bacana e eu sei que a “culpa” é do assaltante, se eu for assaltada. Só que o meu instinto de preservação me faz ser atenta e cuidadosa. Pode até acontecer, mas eu não vou colaborar com o “azar”.
Também aprendemos “direção defensiva” que é dirigir administrando os riscos – inclusive da imprudência de outros condutores. O motorista sabe que a “culpa” não é dele, caso bata de frente com o outro carro que vem na contramão. Mas se ele não quiser ser um defunto cheio de razão, desvia da maneira correta para tentar evitar o acidente. A segurança pública não é meu trabalho, o trânsito de veículos é assunto do DETRAN. Mas, na vida real, nenhum indivíduo – adulto e funcional - pode abrir mão da sua própria capacidade de autoproteção.
O outro está posto, não há nada que eu possa fazer para mudar o comportamento alheio. Então, cuido de mim. Isso significa me afastar de humanos e situações que ofereçam perigo. Como instrumentos, aprendemos a decodificar comportamentos “suspeitos” e a tomar atitudes de prevenção. Contra qualquer perigo conhecido há um “protocolo de segurança” associado e acatado pela maioria das pessoas. Observe que, entre todas, a única vítima que “não tem como se prevenir” é a mulher que sofre violência doméstica.
(Estou falando de mulheres adultas e funcionais que sofrem violência em casa, dos próprios parceiros, escolhidos por elas, com liberdade. Sabemos que a violência contra a mulher tem muitos outros aspectos individuais, coletivos e institucionais. Lutamos, ganhamos e perdemos em várias frentes. Reivindicamos o lugar de sujeito, entendemos que precisamos agir e não confundimos “tomar atitudes” com “assumir a culpa”, em nenhum caso. Mas para cada mulher que aparece relatando violência em casa, surgem muitas outras dizendo que ela “não podia fazer nada”. É sobre isso a conversa, aqui.)
A quem interessa que a violência doméstica seja um crime inevitável? Por que aceitamos o lugar de vítimas tão perfeitas? Por que todas as campanhas contra esse tipo de violência tratam apenas do depois da agressão, da reação ao grito, aos objetos quebrados, à violência física ou psicológica? Por que assumimos, todos, que – especificamente contra esse tipo de crime – não há prevenção possível? Porque mulheres de todas as condições sociais, etnias, religiões e graus de escolaridade são vítimas, em algum nível? Você não fica pensando nisso, não? Eu fico.
A resposta a essas perguntas é uma só: toda mulher é treinada para ser vítima. Há gerações, há séculos, há vidas. Servimos ao mundo assim. Tão perfeitamente adestradas que a ideia de que podemos escapar, em vez de fortalecer, nos irrita. Tão absolutamente rendidas que vamos, sem sentir, autorizando “pequenas” violências todos os dias. Tão plenamente educadas para o lugar de “presas” de homens que o instinto de preservação da maioria de nós pode funcionar em qualquer situação, mas quando entra o componente “encontrou um macho”, a pane é quase inevitável. Finalmente, porque a mulher que se comporta como esperado é, antes de tudo, uma otária.
Acolher, acatar, perdoar. Cuidar, estar disponível, alimentar. Limpar, compreender. Sorrir, agradar. Acalmar. Tudo lindo se o verbo "trocar" também fosse conjugado. A nós, não ensinam reciprocidade. Assim, as relações que chamamos “amorosas” são as mais poderosas máquinas de moer mulheres. É isso que nos dizem todas as violências cometidas contra nós, exatamente por quem “amamos”. O que quer que “amor”, nesse contexto tão adoecido, possa significar.
A mulher que sofre violência doméstica podia ter evitado, sim. Porque sabemos que esse tipo de violência segue uma escalada que começa com pequenas deselegâncias e ´"mínimos" desrespeitos. Porque cada indivíduo, de qualquer gênero, é quem decide o que permite na interação com outros indivíduos, na própria vida. Repito: estamos falando de casais formados por decisão de homens e mulheres - maiores de idade, intelectualmente funcionais e livres - por espontânea vontade de ambos.
Não conheço uma mulher que possa dizer que nunca foi agredida por, pelo menos, um homem que lhe jurava “amor”. Mas há quem tenha tornado impossível que isso se repita. Precisamente, são mulheres que aprenderam a validar todos os seus incômodos, a colocar limites claríssimos, a dizer todos os “nãos” que sentem vontade, a não aceitar nada que cause desconforto e, sobretudo, a abortar relações ao primeiro sinal de disfuncionalidade. Também convém não insistir em seduções que não velejem com a maior naturalidade. Se a conexão não for fácil, pessoalmente, eu passo.
Homem que dá chilique, não quero. Homem que bebe e fica "nervoso", não quero. Homem que julga minhas roupas, não quero. Homem que julga meu corpo, não quero também. Homem que faz xixi e molha o vaso, de jeito nenhum. Homem ciumento, fique longe. Homem que gosta de aproveitar sexo pra machucar mulher, nem a pau. Homem racista, homem homofóbico, homem que ouve música sertaneja (mas aí é gosto pessoal). Nenhum desses eu quero.
Também não quero que fique "me ensinando" nada. Não quero “consertar” ninguém nem ser “consertada”. A lista é bem maior ainda e você pode pensar o mesmo que muita gente escreve nos comentários desse meme que mulheres têm feito: “até parece que pode escolher tanto assim”. Posso. Todo mundo pode, basta entender que autoestima não é dizer que se ama em rede social. Inclusive porque não ter um homem não é problema algum, a necessidade de ter é que precisa ser analisada.
“Você é difícil, só faz o que quer”, já escutei de um coitado. Ele tinha toda a razão. Só que “mulher difícil” não apanha de macho. Eles cansam da gente ou são mandados embora antes de desenvolverem aquelas obsessões persecutórias que crendeuspai. Então, o objetivo é ser cada vez mais “difícil”, mais “complicada”.
Esse é o lago de jacarés que protege a minha torre. Aqui em cima, tem dengo, tem risada e várias facilidades. Tem até maniçoba e uma deliciosa feijoada. Mas é pra quem sabe que só vale ombro a ombro, lado a lado. Seja homem ou mulher, amor ou amizade, nenhuma de nós tem que “suportar” nada para ser "amada". Negócio que, inclusive, só presta sem as aspas. Taí o “protocolo de segurança”. Pela bênção de sua mãe, bote em prática.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo