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Poligamia ou monogamia? Você já escolheu sua dor?

O povo anda se apresentando como ‘poligâmigo’ ou ´monogâmico’, só falta mesmo botar no crachá

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 27 de janeiro de 2024 às 08:00

Todo mundo adulto aqui? Espero que sim e já consolados do susto de descobrir que nenhum sistema de regras, de crenças, de juras e combinados (nem os modernos nem os antiquados) - entre dois maiores mentalmente funcionais - está certo ou errado. Também cientes de que os modelos que a gente aplica são mais tentativas do que soluções. Tô falando do amor romântico (esse problema), seja inventado por Roberto Carlos, pelo patriarcado ou pela ararinha azul. Ele - apenas e inevitavelmente – há. A gente que segure essa onda aí.

Em mim, em você, em cada um, pessoal e intransferível jeito de amar. Também sexualidade exclusivíssima e tudo – do amor e do sexo – ainda vai mudando conforme a vida nos acontece. Mudam nossos corpos e sensações, muda o que a gente chama ‘amor’. Os comandos que nos ligam, você pisca e já estão em outro lugar. Pode-se seguir testando ou desistir desse trabalho e há infinitas outras fontes de prazeres no mundo. Mas é igualmente possível que você tropece em alguém que encaixa. Aí precisa decidir: foge para as montanhas ou começa a negociar dentro dos parâmetros postos pela coletividade. ‘Que nome vamos dar a isso?’, ‘que receita vamos seguir?’ começamos a nos perguntar.

Fugir eu sempre apoio, alguns problemas a gente pode evitar. Mas a outra coisa anti-romântica que você pode fazer é partir para a negociação. Digo isso porque – você há de concordar – o que a gente negocia, nessas horas, é o que cada um é capaz de suportar. Um processo tão complexo que vivemos tentando transformar em uma única questão com duas respostas ‘corretas’ e a escolha é do freguês. Com diferentes nomes, bibliografias, nuances, derivações, teóricos e entusiastas, ao longo do tempo a gente vem fazendo duas propostas centrais: poligamia ou monogamia, relações ‘abertas’ ou ‘fechadas’. Esse papo sempre volta com força, pode observar. Tá acontecendo de novo. Tanto que o povo anda se apresentando como ‘poligâmigo’ ou ´monogâmico’, só falta mesmo botar no crachá.

A moça que eu tava lendo diz que é pra ‘descolonizar os afetos’ (pesquise) e eu quase acho graça. Sinto carinho também por mais essa proposta, mas vou fazer 50 anos. Amor livre, poliamor, Somaterapia, trisal... difícil alguém me apresentar uma novidade, um modelo realmente novo que me faça pensar ‘agora, vai!’. Já aprendi que do ‘casamento blindado’ à tal ‘descolonização’, é sempre a gente racionalizando pra, de diferentes maneiras, lidar, com a tal vulnerabilidade. Tentativas de se sentir ‘no caminho certo’ pra dar conta daquele desamparo específico que surge junto com a vontade de ouvir Djavan, ficar perto da pessoa e, se pudesse, não fazer mais nada. Vulgo ‘fudeu’ e você sabe do que falo.

Eu sei que toda relação é aberta por natureza. Inclusive a sua, se há. Ou pelo menos eu ainda não conheci alguém que, querendo ir, não vá. Juntou desejo com oportunidade, ninguém lembra do acerto nem do padre nem de jura nenhuma. Me deixe. Então, isso encerraria a discussão. Só que de jeito nenhum. A gente não consegue essa naturalidade. Se não criamos regras e limites, então não há o imperdoável, não há as culpas e pecados dos quais não abrimos mão. Sobretudo, não se conquista o direito de cobrar do outro o amor combinado. Aí, sem poder cobrar até o ‘incobrável’, não seríamos nós, essa espécie tão frágil.

Esse BaxVi do amor parece nos propor a escolha de quais prazeres e confortos preferimos viver, mas olhe outra vez. As delícias são motivos e não objetivos. Elas são motes, perguntas, já estão. Os contratos são as respostas que conseguimos dar. Então, é no altar do controle – e não do romance – que oferecemos nosso sacrifício. Tentando a permanência, o pessoal mais ‘moderno’ combina uma série de regras para que todos estejam ‘livres e desimpedidos’. O que contradiz, já que pode isso, mas não pode aquilo e você observe a quantidade de diferentes acertos que há nas ‘relações abertas’ e similares. Nesse caso, a dor escolhida é a agonia de lidar com o explícito de quem a gente ama em outros corpos, outras taquicardias, outras possibilidades. Acho barril. Podem dizer que tiram de letra, mas nunca vi nem comi, só ouço falar. É só uma tentativa. Legítima, claro.

Tão legítima quanto a daqueles que escolhem a dor de fazer de conta que seremos, para sempre, ‘só nós dois’. Negócio que também nunca deu certo, tanto que - entre outras provas - os desesperos e dramas contidos nesse formato alimentam, há séculos, boa parte da arte produzida no planeta. Repare. O cinema, a música, a literatura, tudo seria bem diferente se esse modelo, simplesmente, trouxesse paz. Nesse caso, a dor de ‘você finge que me engana, eu finjo que acredito e vice-versa’ é a que escolhemos, tomados por aqueles hormônios. Haja enredo e desencontro. Socorro.

E você? Já escolheu sua dor? Onde vai colocar sua mentira, seu silêncio? De que natureza será o não-dito das suas relações? Por onde vai doer seu amor? Meu modelo indolor, sou eu livre e os objetos dos meus desejos só desejando a mim, pelo tempo que eu quiser. Engraçadinha, né? Também acho. Cada pessoa é o que é. Mas nunca encontrei quem topasse. Felizmente, até. Digo isso porque, talvez, o ‘pote de ouro’ não seja ter o jeito que quero, mas o gozo improvável de, um dia, entender que não podemos com ‘amor’. Nós, indivíduos com todas as ‘colonizações’, biologias e, principalmente, “não sei”. Tudo nosso, acatado e cabendo. Aí apenas descansar, confortável, justamente na angústia do não controlar nada em mim nem em ninguém. Na impossibilidade. No espanto. Você acha que viajei? É. Pode ser.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo