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Flavia Azevedo
Publicado em 14 de setembro de 2024 às 05:00
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Ana de Hollanda - filha de Sérgio Buarque de Hollanda e irmã de Chico Buarque - foi ministra da Cultura do Brasil entre 2011 e 2012. Também é cantora, compositora, atriz, produtora e mais uma cacetada de coisas que aparecem no site dela. Entre as quais, “escreve sobre assuntos culturais”. >
Ao juntar o contexto familiar e social de Ana com o fato de Ana ser uma mulher e com o ‘desabafo’ que Ana postou nas redes sociais, na semana passada, fiquei assustada e pensei um monte de palavrões que não devo publicar. Então, vou fazer o que é civilizado. Hoje, o discurso que Ana publicou é o tema deste papo.>
No tal post, Ana opina sobre a situação que resultou na queda do ex-ministro Silvio Almeida com um texto que não pode passar como se nada houvera. Isso porque ele serve com perfeição para ilustrar o passo a passo do percurso do pensamento mais ordinário, sempre que o crime é sexual e a vítima é uma de nós.>
No que Ana Buarque de Hollanda escreve, na forma que pensa sobre o acontecimento, tudo faz parte da “cultura do estupro”, afirmo. Essa que nos estrutura e vaza, muitas vezes sem que a pessoa perceba. O que me entristece bastante, principalmente quando acontece “nas melhores famílias”, como é o caso.>
Então, transcrevo na íntegra (inclusive com os erros de português que não vou consertar) e vamos analisar o post, a seguir. Por partes. Aí, depois de pensar direitinho, você cai nessa conversa (no caso em questão e em outros similares) só mesmo se quiser. Siga o fio, observe como isso funciona e, se ainda não sabe, aprenda a ler os sinais.>
Ana começa escrevendo assim: “Em relação às denuncias de assédio do ministro Silvio Almeida, eu confesso que inicialmente fiquei arrasada e revoltada com ele, a quem todos depositamos muitas esperanças.”>
(Minha tradução: se Silvio cometeu esse crime, que pague.)>
Ou seja: como sempre, o senso comum anuncia odiar o crime e repudiar o autor, mesmo que seja necessário “cortar na própria carne”. Com essa postura “digna” inicial, reivindica a isenção e a confiabilidade necessárias para validação da linha de pensamento que, em seguida, passa a aplicar ao caso, fazendo as adaptações necessárias.>
O post de Ana continua: “Mas depois que fui acompanhando as informações, as denúncias e sua demissão sumária, ao mesmo tempo em que lia a troca de mensagens de dois amigos, incluindo demonstrações de afeto e admiração recíprocas e via também a resistência dele assim como sua disposição de apresentar provas contrárias ao que se atribuía a ele, me veio a dúvida.”>
(Minha tradução: mas veja bem, isso parece meio improvável.)>
Ou seja: o conectivo de oposição nunca tarda nem falha. Ana optou pelo “mas”. Outras pessoas preferem “porém”, “contudo”, “por outro lado” ou “entretanto” e o que importa é o objetivo dessa mudança de direção: relativizar. Também, de algum modo, plantar a semente da “dúvida” (ela escreve essa palavra). Sobre o que diz a mulher, claro. É o início de uma (ainda) velada defesa do acusado.>
Ana segue: “Afinal, numa eventual liberdade que pode existir entre amigos, não é impossível que algum dos dois, - não importa o sexo - confunda as coisas e acredite que possa haver uma atração física entre eles.”>
(Minha tradução: havia ambiente e Silvio se sentiu atraído por Anielle.)>
Ou seja: sabemos que o silêncio é não, que “não é não”, que só o “sim” significa “sim”. Ana defende a ideia de que isso não é tão claro. Na cultura do estupro, se a mulher cala é porque consente e o “não” feminino quer dizer “talvez”. Interessante que em nenhuma outra área da vida homens “confundem as coisas” tão frequentemente.>
Ana não para: “Acho que todas nós já vivemos experiências assim. É o caso de alertar de que não está interessada/o em nada mais além da amizade.”>
(Minha tradução: Anielle não se posicionou, aceitou o interesse de Silvio.)>
Ou seja: na lógica que Ana reproduz, a mulher precisa adivinhar que o homem está fazendo “confusão” na cabeça dele, convocar a DR e explicar direitinho, caso não se sinta atraída pelo homem. Não é ele quem deve checar se há reciprocidade antes de avançar. Percebe a inversão?>
Olha essa parte do texto de Ana: “Mas, se por acaso isso acontecer, não é nenhum drama. Ninguém abusou de ninguém: houve apenas um mal entendido.”>
(Minha tradução: se não foi competente pra evitar o assédio, Anielle pelo menos ficasse quieta e não fizesse presepada.)>
Ou seja: na opinião de Ana, sabemos que fomos feitas para “isso”. “Isso” é a “passada de mão”, a cantada deslocada, o convite insistente, as dezenas de mensagens e tudo aquilo que passamos a nomear, colocando dentro do conjunto “abusos sexuais”. Um “drama”, na opinião de Ana e na cultura do estupro também.>
Agora uma desonestidade de Ana: “Mulheres adultas não são crianças indefesas como se quer apresentar. O caso da acusação de Anielle, não pode ser configurado como assédio, porque o ministro não era hierarquicamente superior a ela e também não houve uso de força física contra ela.”>
(Minha tradução: Anielle não apareceu toda roxa nem foi ameaçada de demissão, se aconteceu alguma coisa, foi bobagem.)>
Ou seja: sim, algumas linhas da advocacia consideram trocar a palavra "assédio" por “importunação”, se não há relação hierárquica entre os envolvidos. Por outro lado, quando há uso de força física, não é assédio nem importunação, mas estupro. De todo modo, o esforço para minimizar os crimes também é comum nesse tipo de papo. Sobre a parte de mulher querer parecer “criança indefesa”... vou pular.>
Lá vem Ana: “Por quê ela não o colocou no seu lugar, se é que a versão dela é verdadeira?”>
(Minha tradução: é óbvio que Anielle está mentindo!)>
Ou seja: agora é aquela parte em que a mulher que denuncia é explicitamente desqualificada. “Por que não fez isso?”, “Por que não fez aquilo?” e não fazer aquilo que a pessoa acha correto é a “prova concreta” de que a denunciante mente. Pronto, aqui já temos “a verdadeira culpada”.>
Espia o desfecho do texto de Ana que eu volto no final: “Por que esse caso, de conhecimento geral na Esplanada há mais de um ano, foi jogado diretamente na mídia e não analisado internamente em sigilo, com espaço para acusação e defesa se manifestarem? Por quê, ao contrário de Silvio Almeida, inúmeros políticos brancos são tratados respeitosamente, mesmo que acusados, com provas, de agressões e estupros de mulheres? O que levou uma mulher negra a se voltar contra um antigo amigo, colega negro, a ponto de destruí-lo como profissional, como ser humano, como pai, filho e marido, sem que ele pudesse ter espaço para defesa?”>
(Minha tradução: Anielle deveria ter vergonha por causar esse estrago na vida de Silvio.)>
Ou seja: depois que “descobrem” quem é “a culpada”, chega o momento de emocionar a plateia, enquanto prestam solidariedade ao denunciado. Para isso, usam todos os elementos que possam causar sentimentos como pena e indignação. Direcionados ao suspeito, claro. Vale criticar a forma de denúncia, clamar por segredo onde não cabe, comparar com outros e apontar o tratamento “especialmente humilhante” pelo qual estaria passando o acusado. Por fim, o último ato é evocar a culpa cristã. Para a mulher, evidentemente, que “se voltou contra” um homem “bom”, esse ser indefeso, essa vítima da nossa coletiva e frívola crueldade.>
Agora releia minha tradução do discurso de Ana e observe que é uma fórmula frequentemente aplicada:>
Se ele cometeu esse crime, que pague. Mas veja bem, isso parece meio improvável. Havia ambiente e ele se sentiu atraído por ela. Ela não se posicionou, aceitou o interesse dele. Se não foi competente pra evitar o assédio, ela pelo menos ficasse quieta e não fizesse presepada. Ela não apareceu toda roxa nem foi ameaçada de demissão, se aconteceu alguma coisa, foi bobagem. É óbvio que essa mulher está mentindo. Ela deveria ter vergonha por causar esse estrago na vida do cara.>
Tudo óbvio, tudo igual, TUDO errado. Tudo triste demais.>
Avançamos, eu sei. Mas era pra vir todo mundo, e tem ficado muita gente pra trás. >
(Ainda que, eventualmente, seja provada a inocência do ex-ministro, não retiro uma vírgula deste texto que trata da fórmula, do discurso comum aplicado, por Ana, ao caso. Espero que você tenha entendido. Tchau.)>
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>