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Toda mulher tem o direito de ser feia

A associação entre autoestima feminina e beleza é a regra mais limitante e paralisante, entre tantas que nos impõem

  • D
  • Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2023 às 08:30

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Eu não vou discutir o que é bonito e o que é feio, aos olhos de cada um de nós, nem  ao olhos "do pai". Ou da mãe da gente. Muito menos chover no molhado dizendo que beleza é conceito flutuante, a depender de variáveis temporais. Ou geopolíticas, num mesmo tempo. Que a mulher "feia" de uma época - ou lugar - pode ser a mesma "linda" de outra. Tudo isso a gente já sabe e vive na prática.

Exemplo: minha amiga portuguesa tem a bunda grande. Quando morávamos em Londres - e convivíamos bastante - não foram poucas as vezes em que ela me perguntou se certa roupa "disfarçava" a tal bunda. Ela achava feio e vulgar que o volume marcasse ou chamasse a atenção. Pudesse escolher, gostaria de ser "xulada", como se chama, na Bahia, quem nasceu com menos carne lá atrás. 

Foi tanto que convivi com essa moça preocupada com o "excesso" de bunda - e com européias "xuladas" que adoravam ser "xuladas" - que passei a achar exótica a mania brasileira de bundão. Por mais que eu dissesse à minha amiga que a bunda dela era bonita, aquele volume, pra mim, deixou de significar um "padrão". Daí, eu, que nasci e cresci na Bahia, passei a olhar bundas tamanho "p" sem enxergar nenhuma "falta".

Essa experiência banal se aproxima da estratégia de movimentos que têm, como base, o fortalecimento da "autoestima" (depois você vai entender essas aspas) de pessoas com corpos "dissidentes", em nossa cultura e em nosso tempo. A ideia é oferecer referências positivas para que aqueles corpos passem a ser considerados "belos" por quem os habita. 

Por esse ângulo, acho importantes as pessoas que tomam a dianteira e expõem, massivamente, seus corpos considerados "feios", até arriscando a saúde mental. O padrão é violento, sabemos, principalmente contra mulheres. Os ataques da mediocridade são muitos, infelizmente. É preciso ser forte. E elas seguem. Funciona.

A pessoa que se acha "bonita" começa a se comportar como "bonita". Daí, convence outras pessoas de que é "bonita" e assim, aos poucos, vai ampliando percepções. Relevante, principalmente quando traços físicos considerados "feios" trazem outros conteúdos. Racismo, etarismo, capacitismo e outros péssimos "ismos", como sabemos, são constitutivos do tal "padrão".

Tudo ótimo, mas andei pensando de outro jeito. Aqui, o que eu quero dizer é que toda mulher tem o direito de ser feia. Muito mais do que interferir no "padrão", caber em algum "padrão", buscar novas referências e se convencer - ou fingir que se convenceu - de que é "linda", toda mulher precisa virar a chave da necessidade absoluta desse adjetivo. Isso porque a associação entre autoestima feminina e beleza é a regra mais limitante e paralisante, entre tantas que nos impõem. Eu não tô dizendo que nasci imune a ela. Mas a pessoa pode evoluir.

"Tem que se amar, você é linda, se ache linda!" e, desse modo, gostar de si mesma depende da beleza vista no espelho. Percebe que, mesmo na digressão, a busca ainda é a mesma? Então, se depois de todas as tentativas de se achar "linda", a mulher não conseguir, será infeliz para sempre porque não vai gostar de si já que "autoestima" significa "se achar linda". Não conseguindo "se achar linda", a mulher se convence de que "vale menos" no "mercado" e anda sobre a Terra se sentindo "menorzinha" e até mais "barata".

Mesmo aquelas que se acham "lindas" se sentirão "menores" em momentos nos quais estiverem menos "lindas". Esses momentos existem para todas as pessoas, sem exceção. Ou seja, se a base da autoestima é essa, evidentemente, em algum momento, ela vai desmoronar. Se sentir bonita é ótimo, sim. Também adoro. Mas não pode ser condição para estar bem e se gostar.

Quem quiser ficar por aí que fique. Eu aprendi muito com certos namorados feíssimos (ou fora do padrão) e de autoestima inabalável. Se todos eles diziam (sinceramente ou não, deus é quem sabe) que eu era "linda" com a certeza de que eu precisava desse "afago", já passei tempos com homens para os quais era impossível dizer um mísero "você também", sem parecer muito, muito falsa. E não fazia falta.

A sensação sempre foi a de que, na hierarquia das "qualidades", pra ele, a que ele tinha valia mais e eu acabava sendo convencida também. Era feio, porém inteligente. Pronto. A inteligência é que vale. É feio, mas transa bem. Boa merda é beleza, não serve pra nada. É horroroso, mas tem bom gosto. Então, o bom gosto passa a ser o "valor" que inunda o ambiente daquela relação. Toca um instrumento e aí coitadas são as pessoas que não têm talento musical. Percebe o método? Genial.

Para cada um, o modelo favorável a ele mesmo. Autoestima em paz. Quando não até exacerbada. O líder deles deve ser Vinícius de Moraes. O "poetinha" foi um dos homens mais "feios", fisicamente, que já vi na vida. Em que padrão ele cabia? Que eu saiba, em nenhum. Mas, porque era muito talentoso, se achava o máximo e até no direito de dizer, às mulheres, que "beleza é fundamental". Espia a ousadia do indivíduo. Pois convenceu foi muita gente e pegou geral.

É como se cada um deles escolhesse a própria modalidade de "competição". Isso, enquanto todas nós somos postas na mesma raia. As "Olimpíadas Masculinas" têm inteligência, competência, talento, humor e mais uma infinidade de possibilidades de podium. A nossa só tem a modalidade "beleza" e quem não for "linda", que faça de conta que é, que finja ser ou se ache uma merda porque não é. 

Pensar sobre isso, pra mim, foi a tal "virada de chave". Mulher nenhuma precisa ser "linda" nem gastar um tempo grande da vida tentando caber em algum modelo, buscando ouvir "você é linda" e só assim se sentir desejável. Se quiser, pode, claro. Mas não, não é necessário. 

A gente pode até prefeir outros adjetivos, sabia? De verdade. Eu amo ouvir "que mulher interessante!", por exemplo, principalmente pela riqueza dessa subjetividade. Também porque eu sei que é, sempre foi e sempre será verdade. "Você é muito inteligente!" é outro que também adoro e concordo. Fico feliz com esse frequente elogio que diz do que sou e não de como pareço, em determinado momento ou lugar.

No fim das contas, reduzir qualquer mulher a apenas "linda" sempre foi ou será uma injustiça que agora percebo prejudicial e quase ofensiva. Já começa na infância, inclusive. Os meninos são várias coisas. Nós somos - sempre e principalmente - "lindas". Olhando daqui, não sei como já me dei por satisfeita com o olhar de quem viu tão pouco e me elogiou com tanta preguiça. "Só isso?", seria capaz de perguntar, hoje em dia, diante de um solitário e desmilinguido "você é linda". Aham... e? 

Há muitas maneiras de ser foda na vida. Para homens e mulheres. Essa é a verdade. Acreditar na beleza física como única - ou principal - via é um engano que nos faz muito mal. É cair na armadilha que nos suga tempo, energia e rios de dinheiro. A indústria da "beleza" ama esse engano. Também todos os homens que estão se divertindo e ocupando os espaços de decisão, enquanto muitas de nós fazem da busca da própria "beleza" o assunto mais importante.

Se você é mulher - "linda" ou "feia" - pense nisso. Considere examinar a sua própria ordem hierárquica de "qualidades". Coloque lá no topo aquela sua característica forte, única e individual. É a partir dela que tudo se criará. Aí, o "padrão" pode dizer o que quiser. Você ri olhando do alto. Isso é, no fim das contas, um pouco de resgate dos espaços que nos são dificultados. Também de um sentido mais interessante de autoestima. Ou, pelo menos, de uma parte importante do que cabe no conceito de "gostar de si mesma". Esse que anda todo cagado.