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A extrema direita e a negação da história

A arte e a história, museus e professores, livros e peças de teatro existem para mostrar como chegamos até aqui

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 1 de setembro de 2025 às 05:00

Bertolt Brecht revolucionou as artes cênicas com seu Teatro Épico; expressão que ele pegou emprestado, dentre outras tantas, de Erwin Piscator. Suas peças de maturidade, que realmente representam o auge do seu teatro, eram todas propositalmente de abordagem claramente histórica.

Ele julgava que esse distanciamento necessário da história, essa visão do passado, seria uma provocação sobre o presente, uma maneira de perceber noutro tempo, noutras culturas, o que se perpetua dos males da humanidade.

Quando Brecht propõe um teatro épico, ele quer quebrar com uma curva dramática única que envolva o espectador. Sua intenção não é desfazer a interpretação, a tensão da cena, mas quebrar com a ilusão dando saltos de lugar, tempo e espaço, mostrando pequenas situações que se completam ou se chocam, fazendo um panorama mais abrangente, político e buscando provocar um olhar crítico que não se encante pela história e pelos personagens.

A abordagem histórica da literatura também segue sendo notável referência, mesmo em se tratando de mera ficção, muitas vezes. O descompromisso com um posicionamento político claro, e a necessidade de colocar o conflito e as contradições em evidência, bem como as injustiças e as disputas de poder e opressões, fez com que pensadores progressistas como Marx e Lenin saíssem em defesa de escritores conservadores. Ambos defendiam, ao seu modo, que os grandes ficcionistas, sendo realmente grandes, naturalmente denunciariam as desigualdades do seu tempo, por terem estes a sensibilidade de perceber as mazelas humanas.

Brecht e Piscator, assim como Shakespeare ou Strindberg, e diversos romancistas de grandes obras históricas, de alguma maneira, viam a arte e a literatura como um museu, onde você se desloca e vê a história sob diversos ângulos, narrativas, abordagens. Cada sala nova, quadro, ou capítulo, uma pausa reflexiva. Cada nova situação, um entrechoque de realidade, um conflito de ideias, uma exposição de fatos contraditórios.

Assim como no teatro e na literatura, um museu conta nossa história, a história da humanidade, ou uma história da natureza vista pela humanidade. Estamos sempre presentes, lá, e mostrando, de alguma maneira, mesmo que pela contramão, que somos os únicos seres que adulteramos, corrompemos a harmonia do meio-ambiente em nossa evolução.

E como fizemos isso? Construindo.

E como fizemos isso? Destruindo.

Para construir alguma coisa, fosse um abrigo, uma roupa, uma represa, uma plantação, precisamos antes destruir com algo da natureza. Tirar o ambiente de sua harmonia anterior.

O mesmo serve para estruturas de poder. Para se criar uma tribo ou um império, o homem precisou destruir. Vidas, estruturas sociais, liberdades, espontaneidades, civilizações, culturas, soberanias, famílias. Nossa história é, infelizmente e inevitavelmente, por mais belezas que tenhamos construído, uma história de destruição.

A relação entre museu, história, cultura e arte é inevitável. O museu se estrutura de histórias, culturas e artes, basicamente (com todos seus desdobramentos).

É natural, portanto, que qualquer aula de história, expografia de museu e uma obra de arte ou livro sejam também uma denúncia de nossas mazelas. Na construção das pirâmides do Egito ou da cidade de São Petersburgo - duas notáveis obras que merecem toda admiração -, milhares, ou centenas de milhares morreram, em condições precárias, muitas vezes de escravização. Assim como na formação do império dos EUA - admirado por tantos -, culturas, tribos e tradições foram dizimadas, violentadas e injustiçadas.

É impossível a um professor de história, a um museólogo ou a um artista retratar o holocausto judeu, a ditadura militar brasileira ou a pandemia da covid-19 sem que se apontem o terror oficial, a escancarada injustiça, a criminosa opressão, a vergonhosa conduta pública dos mandantes, poderosos, líderes, cúmplices da desgraça.

Agora, mais uma vez, os crápulas da extrema direita, que sempre se valeram do terror oficial, da escancarada injustiça e da criminosa opressão, querem censurar e recontar a história. Eles alegam que ensinar nosso passado de crimes oficiais, desigualdades e injustiças, seja na sala de aula, no museu ou nos palcos e livros, é ter um viés esquerdista, comunista.

Omitir, nestes casos, é mentir. Não é simplesmente criar uma narrativa mais otimista, ressaltando os pontos positivos e as conquistas, as vitórias, as glórias. Apagar toda a desgraça que nos conduziu ao que vivemos, agora, é tirar a consciência crítica da população. É se utilizar do último refúgio do canalha, o patriotismo, por exemplo, como diria Samuel Johnson, para se podar qualquer possibilidade de levante, revolução e/ou protagonismo dos que sempre são explorados, humilhados e escanteados. É o argumento do governo atual dos EUA, que acusa museus de desprezarem conquistas e vitórias do país em detrimento de uma “desnecessária” exposição das opressões e injustiças, dominações e invasões que formaram o estado norte-americano.

A perseguição a artistas, o “Escola sem Partido” e as recentes interferências de Donald Trump em museus e universidades são inegáveis ações autocráticas e ditatoriais. É usar do poder para se perpetuar nele, e reescrever a história com se isso fosse heróico. É uma tentativa de apagar as verdadeiras razões pelas quais impérios dominam povos, o motivo de existir tanta comida e tanta fome no mundo ao mesmo tempo, e a consequência de existir tanta pobreza e tantos milionários no mundo concomitantemente.

A arte e a história, museus e professores, livros e peças de teatro existem para mostrar como chegamos até aqui. Construindo belezas e destruindo naturezas. E resistindo contra os que insistem em apagar a história, e atropelar qualquer possibilidade de convívio pacífico e sensato com o meio-ambiente, com o diferente e com a verdade dos fatos.

Alguma hora, a história será implacável com essa gente. E, no futuro, a arte, os museus e os livros seguirão contando essas e outras desgraças através da beleza. Porque a verdade e a beleza sempre triunfam, em algum momento da história.