Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Flavia Azevedo
Publicado em 2 de setembro de 2025 às 06:00
Calma que você já vai ligar o nome à pessoa: o “língua de mel” é sedutor, se “apaixona” instantaneamente e, nos primeiros dias, a coisa que ele mais quer é fazer você se sentir única e especial. Identificou? Pois é. Todas nós já cruzamos com pelo menos um desses exemplares, e seria ótimo se o problema fosse apenas o grude excessivo. Só que ele não é apenas mais um “emocionado”. Por trás do espetáculo do “língua de mel” existe uma estratégia de domínio, que pode evoluir para manipulação e, em casos extremos, violência física. Neste texto, vamos desmontar cada passo dessa encenação, mostrar como os sinais são claros desde o início e provar que qualquer mulher atenta pode agir de forma estratégica para sair ilesa. Spoiler: o tipo de sedução já entrega o roteiro, e a autonomia continua sendo a solução. >
O início de qualquer relação com um “língua de mel” seria cômico, se não anunciasse tragédia. É o “love bombing”, o bombardeio afetivo descrito por psicólogas e estudiosas como tática de manipulação. Ou seja, ele está “amando” você e não apenas encantado ou lhe conhecendo. Os elogios são muitos e apressados, as declarações de amor são intensas e os gestos românticos parecem coisa de filme. Tudo para que você se sinta valorizada, especial, diferente de todas as outras mulheres que existem, existirão ou já existiram. O bombardeio pode ser tão espetacular que, se lhe pegar desprevenida, você se entrega. Aí, pronto: caiu na armadilha, passou pelo portal em direção ao ciclo de manipulação que vem em seguida.>
À medida que a relação avança, o que parecia cuidado começa a virar controle. Críticas disfarçadas sobre roupas, amigos, hábitos ou decisões pessoais minam sua autonomia aos pouquinhos. De repente, ele “prefere” que você não use batom, ele não “gostaria” que você saísse com sua prima e, talvez, ache um pouco “estranho” que você tenha amigos íntimos. Em algumas conversas, ele pode ser mais “ríspido”, mas logo recua. A essa altura, os elogios já são mais raros, por exemplo, e você já está com uma “pulga atrás da orelha” da sua autoestima, inclusive profissional. Ele tem muitas reticências. Essa etapa é bem longa, você se “acostuma”.>
Um dia, por um motivo qualquer, você ouve um grito. É a nova fase que se anuncia. “Eu só faço isso porque me importo demais com você” e frases parecidas fazem você duvidar de si mesma, questionar sua percepção da realidade, se sentir “errada” ou “menor” do que ele. O gaslighting entra em cena, distorcendo fatos, confundindo, criando sensação de instabilidade e dependência que fortalece o controle dele. É o momento das grandes brigas, dos murros em paredes, das explosões emocionais. Você sente vergonha, talvez ache que “tira ele do sério” e não conta nada pra ninguém.>
Depois do abuso, sempre vem a reconciliação. A famosa lua de mel acontece em meio a pedidos de perdão, talvez lágrimas, presentes maravilhosos, gestos românticos e promessas de mudança. Vocês planejam viagens e aventuras. Os “língua de mel” se excitam muito com “sexo de reconciliação”, observe bem isso. Tudo é feito para que você acredite que o encanto inicial ainda existe e que “o homem certo” pode voltar. É nesse vai-e-vem entre abuso e reconciliação que a dependência emocional pode se estabelecer e a percepção da violência se embaralha. Entende que, aqui, voltamos ao princípio? Pronto: o ciclo se fechou e, daqui a pouco, se inicia outra vez.>
Com o tempo, os ciclos passam a ser mais intensos e rápidos. A violência psicológica se torna mais frequente, enquanto o encanto diminui. Você começa a normalizar o abuso, alternando esperança e medo, tentando conciliar a lembrança do cuidado inicial com a realidade da agressão. “Não é possível, ele não é assim”, você pensa, diante de cada violência. Pois ele é exatamente isso, você está presa em um inferno e vai precisar de um grande esforço pra sair desse lugar horrível. Com um detalhe: vai ter que tomar essa decisão e começar a agir sozinha porque, nesse percurso, você se afastou dos amigos e da família. É nessa fase que acontecem os espancamentos e feminicídios.>
Homens que seguem esse padrão podem ter traços de personalidade como narcisismo, histrionismo, traços antissociais e borderline. Grosso modo, narcisistas desvalorizam o outro para manter a sensação de superioridade; indivíduos histriônicos exigem atenção constante; traços antissociais reforçam charme superficial e ausência de responsabilidade; traços borderline contribuem para explosões e instabilidade. Eles também podem se dizer “deprimidos”, “traumatizados” ou “passando por momento difícil”. Tudo bem, mas nada disso é problema seu. Seu trabalho é entender o ciclo e nunca cair nessa armadilha. Uma vez que tenha caído, é lutar pra sair dela o mais rapidamente possível.>
Conheça o ciclo do abusador “língua de mel”:>
1. Love bombing: elogios, atenção intensa, gestos exagerados, “você é especial”>
2. Tensão disfarçada de cuidado: críticas sutis sobre escolhas pessoais, amigos ou hábitos>
3. Explosão justificada pelo afeto: gritos, ameaças ou manipulação emocional, seguidos de desculpas>
4. Lua de mel: presentes, gestos românticos e promessas de mudança>
5. Escalada e risco fatal: ciclos mais rápidos e intensos. Quando a parceira ameaça sair: “Sem você eu não existo”, “Se não for minha, não será de ninguém”. Possível desfecho: feminicídio>
Como agir nos primeiros sinais e se proteger:>
1. Confie na intuição: desconforto ou sensação de que algo está errado é suficiente>
2. Evite envolvimento emocional precoce: não compartilhe vulnerabilidades, segredos ou expectativas íntimas de início>
3. Observe comportamento versus palavras: carinhoso publicamente, controlador na intimidade? Atenção>
4. Estabeleça limites claros: não aceite restrições ou críticas que gerem desconforto>
5. Reforce sua autonomia: priorize suas escolhas, seu tempo e seu espaço pessoal>
6. Reduza ou corte contato: caso seja desrespeitada, bloqueie mensagens, redes sociais e números se necessário>
7. Procure apoio externo: caso ele insista, amigos, familiares ou profissionais podem oferecer proteção>
8. Não internalize culpa: você pode ter caído no golpe, mas o abuso é responsabilidade exclusiva do agressor>
Dica bônus: “love bombing” só funciona com mulheres que estão vulneráveis e pouco informadas. Diante de uma vida preenchida e do olhar atento, o exagero é percebido imediatamente. Reconhecer padrões, manter limites claros e agir com consciência transforma o abusador em figura patética, em vez de perigosa, logo no início. Aí, evidentemente, o que ele faz é sair correndo.>
Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida>