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Gil Vicente Tavares
Publicado em 1 de outubro de 2025 às 05:00
Novamente, a discussão sobre fantasias de carnaval veio à tona, nas notícias. Um vereador de Salvador teve um projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal de Salvador, em que, dentre algumas diretrizes combatendo o que ele chama de cristofobia, fica proibido o uso de fantasias desrespeitosas aos cristãos. >
Prontamente, setores progressistas e gente dita de esquerda entraram na discussão alegando ser um absurdo tolher a liberdade do carnaval, uma festa que justamente exalta a transgressão. Alguns bradaram que estávamos virando um país fundamentalista, e que as leis não poderiam existir baseadas em crenças pessoais, e que a maioria não podia ser tolhida de sua brincadeira por alguns se dizerem feridos em suas suscetibilidades… >
Eu, particularmente, penso que nada deva ser proibido, em se tratando de uma festa como o carnaval. Aliás, eu sou a favor da total liberdade de expressão. Todos podem representar e falar de tudo, do jeito que quiserem. Existe um limite? Sim, a lei. Para os casos onde haja o preconceito, humilhação, xenofobia, machismo, ou qualquer dessas manifestações estúpidas da sociedade, os rigores da lei.>
É o caso do humor, também. O humor pode brincar com tudo. Se, acaso, a brincadeira saiu do humor para a ofensa, humilhação, estigmatização ou violência, aí não se trata mais de humorismo, mas sim do sádico prazer de, disfarçado de piada, constranger ou diminuir um grupo religioso, social ou racial, por exemplo.>
Quando alguém se fantasia de freira, no carnaval, isso não provoca uma parte da sociedade a odiar freiras, achar que elas são promíscuas, ou alcoólatras, nem tampouco isso gera na sociedade uma sentimento de que é preciso acabar com as freiras, ou separá-las de nós, ou tirar determinadas vantagens e direitos delas. As fantasias são apenas uma subversão da função social e/ou cultural. Ou uma crítica social, política, direcionada aos maus elementos que compõem qualquer estrato da sociedade.>
Mas podem ser também uma homenagem, mesmo que jocosa, a símbolos, povos, culturas.>
Há uns anos, uma polêmica parecida sobre fantasia de carnaval se deu no país. Alguns indígenas, e seus apoiadores, resolveram se posicionar contra a fantasia de indígenas no carnaval.>
De repente, começou a rolar nas redes sociais a lista das fantasias “proibidas”. As aspas é porque não era uma lei, mas o tal cancelamento e patrulhamento muitas vezes age de maneira mais contundente que uma lei, pois envolve imagem, exposição pública, seguidores e a imprensa “marrom”.>
Talvez, se alguém se propusesse a cotejar as redes sociais de muitos dos que, agora, bradaram contra a proibição de fantasias religiosas no carnaval, talvez encontrasse postagens e comentários apoiando o banimento de fantasias com referências indígenas, além de outras, da festa momesca.>
É claro que sei que as minorias são sempre alvo, e são mais indefesas e atacadas. Mas seja numa fantasia, ou numa piada, não é difícil perceber quando se extrapola o limite da brincadeira e vira um ataque a um grupo social, étnico ou religioso.>
Podemos rir de tudo. Pode-se fazer piada com o candomblé, por exemplo. Por que não? Mas uma coisa é rir de uma piada cujo tema é o candomblé, outra coisa é aplaudir uma piada que ataque o candomblé, que diminua, estigmatize, incite o preconceito e alijamento de uma de nossas principais religiões.>
O que me salta aos olhos é a postura de setores progressistas e de esquerda nessas questões.>
Quando, tempos atrás, movimentos da extrema direita resolveram invadir palcos, galerias, filas de apresentações e exposições de arte, houve um levante generalizado em defesa da liberdade de expressão do artista, e um apoio a temas polêmicos e transgressores, com o discurso de que a arte não poderia se curvar ao incômodo de alguns, se submeter à censura de um determinado grupo social ou religioso.>
Novamente, me recordo de diversos casos onde determinadas minorias abraçadas pelos progressistas invadiram palcos, plateias, galerias, filas, tentando impedir apresentações, censurando obras por conta de suas temáticas, ou protagonismos, ou personagens. Automaticamente, uma imensa massa de “esclarecidos” foi em defesa dos ataques, se posicionando contra artistas; logo os artistas, já naturalmente marginalizados na sociedade.>
Ora, o discurso de que todo mundo pode se fantasiar do que quiser, menos do que eu não quero, ou de que as obras de arte podem representar tudo que eu quiser, menos o que eu não quero, me parece algo opressor, por mais que possa vir de uma minoria oprimida. Ser ou se sentir oprimido não dá a ninguém o direito de ser opressor, penso eu. Reunir milícias para invadir manifestações artísticas só me recorda o pior do século XX. >
Tudo isso faz-me lembrar de diversas pessoas que posam de progressistas, esquerdistas, e que estão a postos sempre para bradar contra os problemas do fascismo contemporâneo. É uma denúncia e indignação, aqui, por causa de perseguição política. É uma revolta e um protesto, acolá, por causa de ações tendenciosas, favorecimentos, corrupções e golpismos vindos da extrema direita.>
No entanto, basta que essas pessoas estejam em algum lugar de poder, decisão, escolha e/ou influência, e seu caráter se revela. Essas mesmas pessoas que acham um absurdo alguém ter sido perseguido pelos direitistas, por conta de suas críticas a determinado gestor, ou político, são as pessoas que aceitam, apoiam, se calam, e são cúmplices das perseguições que acontecem na esquerda.>
Essas mesmas pessoas que atacam favorecimentos e escolhas tendenciosas, oportunismos, revanchismos, amiguismos e inimiguismos da extrema direita, quando têm a oportunidade, agem da mesma maneira, fazendo suas corrupções e dando seus golpes sempre que podem.>
Pensar que você está do lado certo, e que por isso você pode decidir o que pode e o que não pode, é um pensamento totalmente antidemocrático. Parta ele de onde partir. >
Sempre, na história, que um grupo tentou se impor julgando suas pautas como as legítimas, e deslegitimando as pautas alheias, deu merda.>
Lidar com o dessemelhante, com a discordância, com ideias e opiniões antagônicas é difícil.>
Mas o contrário disso é bem pior, e diversos podem ser seus nomes: autoritarismo, ditadura, fascismo…>
E nenhuma fantasia de justiça ou igualdade é possível assim.>
ps.: nem bem nos assustamos com a aprovação do tal projeto de lei sobre cristofobia, e acabo de ler que outro vereador apresenta projeto de lei proibindo “manifestações artísticas com nudez total ou parcial, assim como performances de cunho sexual explícito em locais públicos”. Teatros públicos são locais públicos, museus públicos são locais públicos, o que se configura como uma censura, nos moldes de um país fundamentalista, à livre expressão artística; apesar de haver a tendência de muitos interpretarem o projeto de lei apenas como uma repressão às baixarias de determinadas apresentações musicais. Não se enganem, há um movimento reacionário em curso, advindo do pior legislativo já eleito no país, que é parte de um projeto maior de levar o país a uma nova idade das trevas.>