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Da Redação
Publicado em 21 de março de 2022 às 05:09
- Atualizado há 2 anos
Voltei para Salvador no início de 1988. Depois de ir com meses de nascido ao Rio, voltava para minha terra, moleque, carregado de sotaque e da experiência de um Rio que me foi especial; Diretas Já, Darcy Ribeiro, Angel Vianna, convívio com diversos artistas, e minha escola Senador Correa.>
Já em Salvador, fiz uma série de testes para entrar na quinta série de um colégio onde uma prima minha estudava. E algumas condutas e procedimentos da instituição irritaram minha mãe. Lembro que eu teria que fazer uma redação sobre uma abelha, e não me deram limite. Nesse dia, tiraram minha prova sem eu ter terminado o texto, que já estava com algumas páginas, e foi a gota d'água para minha mãe dizer que eu não estudaria lá.>
Assunto encerrado. O problema, não. Havia passado o tempo das inscrições e eu corria o risco de ficar sem estudar.>
Meu padrasto tinha um amigo de infância que trabalhava no Colégio Sartre, e ele deu um jeito de agendar com Marcone, um dos diretores. Ao entrar em sua sala, deparei-me com o quadro Dinosaurier auf der Autobahn, pintado pelo suíço Giuseppe Reichmuth em 1980. Vejam vocês: eu na Suíça, agora, e só agora descubro a procedência deste quadro que foi uma febre nos anos 80, e que retrata um dinossauro invadindo uma rodovia cheia de automóveis.>
Minha mãe começou a conversar sobre a possibilidade de algum teste, procedimentos, a conversa burocrática fez meus olhos fixarem-se no quadro, abstraindo todo o resto.>
Eis que Marcone interrompe a conversa com minha mãe, olha pra mim, aponta para o quadro e diz que estava presente naquele dia. Eu, de pronto, respondi que sabia, pois estava no carro atrás do dele. Daí em diante, entabulamos um devaneio sobre a situação da estrada, do dinossauro, da gente, consequências e sensações, quando de súbito minha mãe interrompeu a conversa. Preocupada em resolver minha situação, perguntou a Marcone quando seriam os testes, e o que era preciso ser feito. Marcone respondeu: "não precisa, ele já está no Sartre".>
Estando longe da minha terra, no frio suíço, deparei-me com a notícia da demolição do casarão onde aconteceu essa história, e onde estudei meu segundo grau, até 1994. Foram sete anos de Colégio Sartre. De professores e professoras especiais, gincanas, paixões adolescentes, arte, filosofia, recuperações, minha juventude amalgamada à história do colégio.>
Pouco tempo depois, comecei a ouvir relatos de que o colégio estava mudando. Não era mais o mesmo. As fábricas de produção de androides para passar no vestibular foram esmagando qualquer ideia de uma filosofia de ensino, e de uma formação cidadã e humanista. A Escola Senador Correa também fechou, no Rio. Muita gente boa passou por lá. O diretor, Luis Antônio, e seu corpo docente, traziam um conteúdo pedagógico que formava gente, e não máquinas de decorar fórmulas para passar em exames. Por isso, imagino, tenha fechado.>
Recentemente, numa excelente entrevista ao Roda Viva, Sidarta Ribeiro falou sobre este aprendizado mecânico, forçado, onde se decora para a prova um conhecimento que pouco tempo depois se esvai.>
Voltarei a Salvador com o casarão já demolido. Demolir é fácil. E nosso país é craque nisso. Vão-se histórias, memórias, espaços. Tenho andado por cidades milenares pensando que no Brasil quase tudo é descartável.>
Vai ser estranho passar pela Graça e não ver mais o casarão de pé. E, infelizmente, estaremos seguindo nosso natural caminho de, como diria Lévi-Strauss, parecer ser construção, mas já ser ruína.>