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Gil Vicente Tavares
Publicado em 14 de junho de 2025 às 05:00
Está chegando o São João. Ao ouvir um dos maiores sucessos juninos, Espumas ao vento, eu geralmente lembro de duas outras canções. A primeira, Risque, de Ary Barroso, fala: Creia / Toda quimera se esfuma / Como a brancura da espuma / Que se desmancha na areia. A segunda, parceria de João Bosco com Abel Silva, diz: Quem quer viver um amor / Mas não quer suas marcas / Qualquer cicatriz / Ah, ilusão, o amor / Não é risco na areia / Desenho de giz. >
São três belas canções do nosso repertório que se utilizam de metáforas parecidas. Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim / um grande amor não se acaba assim / feito espumas ao vento, diz a canção de Accioly Neto.>
Não é você quem vai me dar na primavera / As flores lindas que eu sonhei no meu verão. Esses versos têm poesia. Poderiam ser de algum letrista de um bolero ou valsa, mas é um xote de Petrúcio Amorim.>
Nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor, diz também a parceria de Abel Silva com Moraes Moreira; segundo Gregório Duvivier o refrão mais bonito do mundo. Poético, né? Metáfora, de novo.>
Mas que não fiquemos na metáfora. Tirando A luz dos olhos meus, o Assum preto de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga fala, com versos diretos, da sina do pássaro que é cegado para cantar. E como bem identifica Antonio Risério, as canções praieiras de Dorival Caymmi não têm uma metáfora sequer. Entre todas, nenhuma metáfora, e são obras das mais belas feitas por algum ser humano.>
Águas de março. Três minutos de uma lista infindável de coisas desconexas com uma melodia repetitiva. É pau, é pedra, é o fim do caminho, diz Tom. E Chico responde, em seu Subúrbio: é pau, é pedra, é fim de linha, é lenha, é fogo, é foda.>
É foda. Essa galera é foda.>
E sabe por quê? Porque todos eles transubstanciam a realidade noutra coisa. Saem do literal para o literário.>
Seja num jogo de palavras, seja numa metáfora, ou numa lente de aumento ou visão distanciada, percebendo as coisas sob outra sensibilidade, a arte e a literatura existem como uma fuga, um descanso, uma provocação sobre a realidade. Jamais algo que seja parte objetiva e direta dela. >
Há, volta e meia, uma discussão sobre diferenciar arte e entretenimento. Discussão meio sem propósito, porque rebaixar algo a um entretenimento (com sentido pejorativo) parece fazer esquecer que a arte tem que, além ou aquém de tudo, entreter.>
Eu jamais vou ao teatro, a um concerto, exposição ou coreografia abdicando do prazer de ali estar. Se a obra não está me entretendo, não me interessa.>
É claro que entreter não é só divertir de maneira leve e descomprometida. Minha atenção pode ser presa por algo denso, complexo, que me faça pensar, e que gere algum incômodo, esforço. Mas considero a pedra de toque de uma obra conseguir criar um novo mundo, pra mim. >
Se avexe não / que amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada. Saudade assim faz doer / amarga que nem jiló. Quem é rico mora na praia / mas quem trabalha não tem onde morar. Tenha fé no azul que tá no frevo / que o azul é a cor da alegria. Já faz três noites que pro norte relampeia / e a asa branca ouvindo o ronco do trovão / já bateu asas e voltou pro meu sertão. Amanhece na luz da campina / Anoitece no meu coração / Tanta terra cabe nessa rima / Só não cabe minha solidão. Não sou tanajura, mas eu crio asas / Com os vaga-lumes, eu quero voar, voar, voar / O céu estrelado hoje é minha casa / Fica mais bonita quando tem luar, luar.>
Eu poderia passar o texto todo citando bons versos de músicas tocadas no São João. Inclusive, as de amor, como algumas acima.>
A grande questão é que estamos sofrendo um surto de literalidade.>
No teatro, vou muitas vezes a peças ver reclamações, denúncias e situações que eu já conheço, já me incomodo, e tenho maneiras mais apropriadas para saber. O que me interessa no teatro não é o tema, a crítica, os dados assustadores, as cenas retratando a realidade, mas como aquelas pessoas transformaram tudo isso em arte. Que pulo do gato deram para trazer algo que se desloque do cotidiano, do vulgar, do estabelecido.>
É claro que uma peça de teatro exige um mergulho mais fundo do que uma canção, por sua dimensão e dramaturgia. Mas basta vermos as grandes obras de amor da nossa música popular, para perceber que viraram sucessos não por falarem de amor, mas pela maneira como falaram do amor.>
Fui ouvir as canções de São João mais tocadas em 2024 no spotify. Não citarei artistas e nem letras, porque a ideia não é atacar ninguém, é apenas constatar que o literal derrubou de vez o literário.>
A literatura, a poesia, a arte abrem portas da percepção. Sensibilizam, provocam, perturbam, incomodam, encantam por caminhos que não são os do cotidiano. Destacam-se justo por trabalhar na exceção, no desvio da rota natural de criação em série, imitadora, reprodutora, funcional, utilitária, tradicional.>
E por tudo isso, me angustia ver que uma arte que atingiu belezas tamanhas, através das composições de gente como Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Accioly Neto, Antônio Barros, Sivuca, Gilberto Gil, está agora sendo reduzida a letras que parecem desabafos de um áudio de whatsapp.>
A fruição musical está sendo transformada. Ouço a lista de festas e percebe-se claramente que as canções parecem todas serem uma continuidade uma da outra. O bombo reto (aquele antibaião duro que tomou conta do sertanejo junino), os temas de corno, traição, saudade, superação e desprezo se misturando em letras que parecem discussões de bar ou telefone, e, o mais angustiante, tudo isso numa uniformidade cansativa.>
Confesso estranhar, mas há um comportamento de manada, e uma busca pela uniformização, que são perceptíveis em tudo. Todos veem e comentam a mesma série. O mesmo escândalo de influenciadores. Um grupo segue tal líder de maneira cega condenando a cegueira dos que seguem outro. No máximo, é isso: um grupo versus o outro. Mas todos individualmente iguais em sua galera.>
Eu, que já escrevi sobre inteligência artificial outras vezes, volto a repetir que ela não é o problema. Ela segue padrões. Ela busca soluções objetivas, compila certezas e dados, e é capaz de criar a partir do lugar-comum.>
Ela não é o problema. O problema somos nós, que cegamente vamos consumindo o prático, objetivo, cotidiano, modelado, sendo resultado não de uma criação, mas de um padrão de repetição. Para essa gente, parece bastar uma IA para criar obras de arte, coletando fórmulas, e teremos sucessos instantâneos e descartáveis. >
Tenho um grande receio de que essa gente toda siga, cada vez mais, em busca da padronização, da redundância e do previsível. Buscando o literal e desprezando o literário.>
E a beleza das canções de São João vai acabar sumindo feito espumas ao vento, quimera que se esfuma, risco na areia, desenho de giz.>