Gil, Chico, e as canções da liberdade

Cerca de 20 anos separam a canção Ensaio geral, de Gilberto Gil, de Vai passar, de Chico Buarque e Francis Hime.

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 19 de fevereiro de 2024 às 11:24

Em 1966, Elis Regina defendia o samba de Gil no 2º Festival da Record, festival esse em que a canção ficou em 5º lugar. As canções vencedoras foram, por empate, Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, e A banda, de Chico Buarque.

Zuza Homem de Mello criou, faz um tempo, um projeto chamado Muito prazer, meu primeiro disco. Infelizmente, ele partiu e não deu continuidade ao projeto, só tendo entrevistado dois artistas, cujos nomes vêm se repetindo a cada parágrafo: Gil e Chico.

Na entrevista com Zuza, eu tomei uma rasteira. O mesmo começou a falar da canção Ensaio geral, dizendo ser uma canção de protesto contra a ditadura, a que mais havia impactado o público.

Fui correndo de volta à canção, pausei o vídeo e fui percebendo o que tinha me passado batido. Gil havia emplacado uma canção de protesto quando ainda não estava tão em evidência esse tipo de música; um preâmbulo de tudo que viria, como diz Zuza na entrevista. Uma canção esquecida no tempo, apesar do impacto na época, e cuja gravação mais recente talvez tenha sido a feita para o songbook de Gil. Gravada sagazmente, estrategicamente e pensadamente por quem? Chico Buarque.

Após o concerto da OSBA em homenagem aos 80 anos de Chico, eu comentava como certas canções importantes, lindas, significativas são perdidas no tempo e pouco conhecidas. Ensaio geral é uma delas. Canção de protesto, defendida por Elis, e que mesmo gente de cultura musical vasta não conhece.

Pois bem.

Num ensaio com a OSBA para o concerto citado acima, eu ouvia Vai passar e comecei, ali, a fazer uma ligação direta entre esta canção e Ensaio geral. Ao fim do ensaio, encontrei Joatan Nascimento, que falava do sentimento que teve, ao reouvir Vai passar, percebendo mais argutamente todos os recados à ditadura. O mesmo que Zuza havia me provocado a fazer com a canção de Gil.

Em 1966, não havia sido promulgado o famigerado AI-5. O ato institucional tensionou de vez a relação da ditadura com a democracia e as liberdades, começando um período de terror, com exílios, torturas, assassinatos e censuras. Mesmo antes dos anos de chumbo, Gil dava voz aos anseios que pairavam sobre o país: “O rancho do novo dia / o cordão da liberdade / e o bloco da mocidade vão sair o carnaval”. Gil antevia o movimento da juventude, da qual ele faria parte, pensando um novo dia, e num cordão da liberdade. E convoca: “É preciso vir à rua / Esperar pela passagem / É preciso ter coragem / E aplaudir o pessoal”.

Gil, que havia participado do Centro Popular de Cultura da Bahia, tinha mais enraizado, que seus contemporâneos, a verve política, de protesto, de denúncia, que já aparecem no disco de 1967, e explodem em mil cores no disco de 1968; o disco também mais maduro e consistente de sua geração, à época, e cujo teor político é pouco comentado.

Em Vai passar, depois de elencar a “página infeliz da nossa história”, as “tenebrosas transações” e as “estranhas catedrais” erguidas, a canção fala de “Um dia afinal”, onde “a nossa pátria-mãe tão distraída” teria “direito a uma alegria fugaz / Uma ofegante epidemia / Que se chamava carnaval”.

A “linda fantasia / Do Bloco da Mocidade / Colorida de ousadia / Costurada de amizade” que Gil fala, e a convocação acima “É preciso vir à rua…”, vão desembocar na convocação de Chico: “Meu Deus, vem olhar / Vem ver de perto uma cidade a cantar / A evolução da liberdade / Até o dia clarear”.

Chico diz que “Vai passar nessa avenida um samba popular”. Ele está comemorando a abertura, mesmo lenta e gradual, porque um dia afinal “o estandarte do sanatório geral vai passar”.

Sim, passou. Mas não totalmente. A anistia ampla, geral e irrestrita deixou de punir crimes militares, e muitos ficaram com aquela equivocada imagem de honestidade, bonança e segurança que a ditadura, numa competente lavagem cerebral, conseguiu introjetar nas cabeças mais frágeis e ignorantes.

O espectro da ditadura ainda nos assusta, seja através de certos políticos, seja através da maneira com que ainda há uma tensão e receio na relação entre os militares, seus crimes, privilégios, que seguem intocáveis em suas barricadas.

Mas a “ofegante epidemia que se chamava carnaval” sempre chega. E Gil, já em 1966, convoca: “Tá na hora, vamos lá / Carnaval é pra valer / Nossa turma é da verdade / E a verdade vai vencer, vai vencer, vai vencer”, a canção repete, e Elis enfatizava efusivamente defendendo a música no festival.

Sim, a verdade tem que vencer. É um processo complicado, mas aos trancos e barrancos vamos chegando lá.

E enquanto esperamos a passagem, “é preciso ter coragem e aplaudir” Gil, Chico e todos os que lutaram e seguem lutando através de suas canções, ações, palavras ou protestos.

Alguma hora o ensaio geral vai passar e a gente estreia uma democracia saudável em “nossa pátria-mãe tão distraída”.

“Oh, que linda fantasia”.