João Bosco: 50 anos além

João é pura música. São 50 anos (51, vai, João, porque o lançamento de Agnus sei é um marco) de uma trajetória muito particular

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 11 de dezembro de 2023 às 08:05

João Bosco comemora, em 2023, 50 anos de carreira.

Em 1972, ainda estudante de engenharia, em Ouro Preto, ele lançou uma canção num disco de bolso do Pasquim. A outra faixa era simplesmente Águas de março, de Tom Jobim. Seria uma parada dura para qualquer um figurar ao lado do nosso compositor mais renomado, e com uma canção incrível.

Não foi.

Um ano antes de estrear profissionalmente e se mudar para o Rio de Janeiro, o artista mineiro carimbava que estava pronto. Tinha começado pronto. Aquilo a que Chico Buarque se refere quanto a Gilberto Gil, quando sua geração surgiu, de que Gil era o que havia surgido pronto, na composição, na voz e no violão, cai como uma luva em João Bosco.

A canção Agnus sei é de uma maturidade assustadora. Parece o corolário de uma parceria; e era só o começo.

João é imediatamente gravado por Elis, ainda em 1972, e no ano em que se lança à profissão, divide com Gilberto Gil praticamente todas as faixas, quatro de cada, no disco Elis (1973, ano também do primeiro disco de João) da cantora gaúcha.

Dois anos depois, João Bosco lança seu segundo disco, Caça à raposa. Quem olha à distância, pensa que é coletânea das melhores de João.

Erro fatal na carreira lançar suas melhores canções todas de vez. Começou acabando, tal qual muitos artistas que não seguram a carreira.

E aí o artista mineiro lança Galos de briga. E quem erra são as previsões óbvias. Ele grava outro disco de repertório incrível parecendo o volume 2 de alguma coletânea comemorando x anos de carreira.

Compositor mais gravado por Elis, depois de Tom Jobim, João Bosco conseguiu em cerca de apenas dez anos de parcerias com Aldir (e mais algumas participações de Paulo Emílio) criar uma obra de uma consistência política e poética, melódica e autêntica, que rapidamente colocou a dupla ao lado de parcerias históricas como Tom e Vinícius, Lennon e McCartney, Brecht e Weill.

Os malabarismos dos versos de Aldir, entre a crônica certeira cotidiana e as sagazes críticas à Ditadura Militar, se juntavam às melodias e harmonias de um músico que, aos poucos, foi deixando seu violão aparecer mais que a banda.

E justo dez anos depois de se tornar um profissional, em sua centésima apresentação, João grava um disco de voz e violão e crava seu lugar, junto a Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil e mais um poucos, como um dos maiores instrumentistas a se acompanhar sozinho.

O caminho estava aberto para as mudanças que viriam com seu disco Gagabirô (que desconfio sempre ser meu preferido). João se abre para outras parcerias, num momento de transição em que as canções com Aldir começam a rarear, e na primeira tentativa com Capinan o mineiro simplesmente cria seu maior sucesso: Papel machê.

Gagabirô é o disco onde o músico João, o instrumentista começa a se sobressair logo na primeira faixa, Bate um balaio ou Rockson do Pandeiro, e é lançada uma de suas mais belas canções, pouco tocada, Senhoras do Amazonas, parceria com Belchior. É o primeiro disco onde ele apresenta canções individuais, e ressalta de forma mais significativa sua relação com a música afrodiaspórica, ao se inspirar num canto de wemba, ouvido num disco afrocubano, e compor a canção Gagabirô. Neologismo seu tão afinado à nova forma de canto que o mineiro mais carioca do país, com pinceladas de Bahia, inaugura em nossa música.

No canto percussivo, sinuoso, quase distorcido do artista mineiro, que foi cada vez mais se acentuando, fica claro que há uma busca pelo tribal, pela nossa origem africana, a quem ele sempre devotou parte considerável de sua obra em toques, estilos, letras, temas. Assim como a língua crioula, em Cabo Verde, é uma reinvenção do português, o canto de João busca um lugar novo em nosso cancioneiro, rememorando línguas de Angola, Congo, Benguela... E traz a isso toda a sofisticação de suas harmonias e ritmos, e de seu violão orquestral, perfeito, exato, só dele.

Vale abrir um parênteses e desviar um pouco da rota para pontuar sua trilha para o Grupo Corpo, Benguelê, onde seus experimentos sonoros com ritmos e cantos afrodiaspóricos chegam a um ápice. É um dos joões que com certeza ele mais gosta de ser.

João segue na busca por novos parceiros, mas com um detalhe que também assusta: ele encontra novos parceiros já emplacando êxitos inquestionáveis. Em Ai ai de mim, de 1987, ele simplesmente compõe dois lindos sucessos com Abel Silva, Quando o amor acontece e Desenho de giz, e reforça ainda mais seu lado instrumentista, chegando a gravar uma faixa totalmente instrumental, junto àqueles vocalises que tanto marcaram a carreira dele. São praticamente scats (como os criados por Louis Armstrong) que ele explora colocando-os no mesmo nível da canção, sendo já parte da mesma. É o caso de Papel machê, por exemplo, onde o vocalise é tão conhecido da plateia quanto a parte com letra de Capinan.

João resolve então se tornar parceiro de si mesmo mais a sério, no disco Bosco (1989), e como não podia deixar de ser, com seu novo parceiro ele lança mais um sucesso, Jade; onde o que ele faz no violão é praticamente parte da canção (e fez do compositor mineiro, não só pelos sucessos, mas pela maneira particular de os tocar, um dos preferidos dos cantores de barzinho que querem mostrar seus dotes ao violão, emulando as harmonias, arpejos e notas do nosso engenheiro de Ponte Nova).

Mesmo emplacando um sucesso totalmente autoral, João não resiste em buscar novas parcerias, e lança em 1991 o emblemático - até no título - Zona de Fronteira, onde ele divide as canções com Antonio Cícero e Wally Salomão.

É claro que, estando sempre pronto, sempre começando já no topo, João emplacou novos sucessos com a dupla, e é gravado pela primeira vez por Gal Costa e Maria Bethânia; cuja gravação de Memória da pele, de João e Wally, deu nome ao disco da segunda, e virou, de imediato, um de seus maiores sucessos, também.

Atravessada a zona de fronteira, João Bosco tinha chegado a um patamar onde lhe bastava gravar discos de sucesso, regravar canções noutros formatos, e descansar das criações, parcerias, e apenas lamber as crias.

Mas é justamente de uma cria sua que surge um outro João, renovado em temas e estilos, embalado pela novidade de uma parceria com seu filho Francisco Bosco. Até 2020, a dupla havia lançado seis discos autorias, sendo praticamente todas as canções dos dois.

Digo praticamente porque em 2009, depois de décadas, João e Aldir voltaram a compor. No disco Não vou pro céu, mas já não vivo no chão (verso de uma das letras de Aldir pro disco) a dupla grava duas inéditas, num trabalho em que a maturidade da dupla pai e filho é coroada com a bela valsa Desnortes, em citação a Caymmi, pai de todos.

As letras solares de Francisco têm em Perfeição, que abre o disco, uma referência clara do tom do disco. Oito anos depois, Bosco pai se junta ao filho para mostrar um outro Francisco mais desiludido, falando em Fim e Nenhum futuro. Estou falando do disco seguinte da dupla: Mano, que zuera (cuja canção título relata os desencontros e fracassos de um flerte noturno).

Esse último disco autoral é também onde há a última parceria de João e Aldir: Duro na queda. E onde João deixa claro que virou uma chave e que agora, como diz a letra de Gilberto Gil, quem manda é a deusa música.

João Bosco grava uma longa faixa onde, depois de regravar João do pulo, ele cita Clube da esquina 2 e se deleita um longo tempo com a melodia, sem letra. Ele grava ainda Coisa nº2, música instrumental de Moacir Santos, marcando esse lado total de entrega ao som.

Numa das últimas apresentações que fui de João, ele começava o arranjo de Corsário com uma demorada e deleitada versão do Concerto de Aranjuez, de Rodrigo, e mais uma vez marcava um caminho sem volta do nosso engenheiro mineiro em busca da música, deusa música, plena, livre, absoluta. Em vez de pular pela janela no colo do público, ele abre a porta de seu estúdio e convida todos a mergulhar em seu preciosismo musical.

João é pura música. São 50 anos (51, vai, João, porque o lançamento de Agnus sei é um marco) de uma trajetória muito particular e que superou parceiros; sem esquecê-los jamais. E que se reinventou. É fácil identificar o violão e o canto de João. A levada do samba e as canções estilo samba-enredo que são só suas. Seus boleros. Suas baladas imbatíveis.

Se eu fosse dedicar espaço a analisar as filigranas de sua obra, eu acabaria escrevendo um livro em dois tomos. Mas não podia deixar acabar o ano sem dedicar um pequeno espaço à imensidão de sua música, em efeméride tão simbólica.

Dia 15 de dezembro, temos João inédito nas plataformas digitais. Ele não para e segue se dedicando devotamente à música.

E eu, se fosse você, aproveitava o embalo e se dedicava devotamente à discografia de João Bosco de Freitas Mucci.

Num momento em que se questiona tanto a qualidade da música produzida no Brasil, nada melhor do que celebrar os 50 anos de um mestre da nossa canção ouvindo toda a beleza que ele criou.